Requalificar e reconverter no mercado de trabalho os portugueses cujas carreiras estão a ser colocadas em risco pelos avanços tecnológicos poderá custar, no mínimo, €19 mil milhões de euros nos próximos 12 anos. É João Duarte, economista e docente da Nova School of Business & Economics (NovaSBE), quem arrisca fazer contas, embora assumindo que a estimativa não é fácil de alcançar e pode pecar por defeito. O cenário é traçado com base nas últimas projeções sobre o impacto da revolução digital no emprego em Portugal, divulgadas recentemente pela Confederação Empresarial de Portugal (CIP), que apontam para a necessidade de requalificação e reconversão de 1,8 milhões de profissionais no país neste horizonte temporal. E se fazer as contas sobre os custos da reconversão não é fácil, encontrar consensos sobre quem paga a fatura é ainda mais complexo. Patrões e sindicatos têm visões diferentes do problema e da solução.
À luz das conclusões do estudo “O Futuro do Trabalho em Portugal”, elaborado pelo McKinsey Global Institute e pela Nova School of Business & Economics (NovaSBE), a pedido da CIP, 37,5% da população empregada em Portugal necessitará de reconversão profissional nos próximos 12 anos. Isto considerando o atual cenário de evolução tecnológica e pressupondo-se que se manterá ao mesmo ritmo que até aqui. Foi deste número que partiu João Duarte, que integrou a equipa da NovaSBE responsável pelo estudo para, a pedido do Expresso, calcular o custo desta revolução de competências para o país. O docente reconhece que “dificilmente existirá uma forma precisa de estimar uma reconversão desta magnitude e com esta especificidade, pois todas as revoluções trazem mudanças drásticas e imprevisíveis”, mas admite que uma forma de alcançar uma estimativa crua dos custos envolvidos é através da extrapolação das despesas atuais das empresas portuguesas com a requalificação dos seus profissionais.
Foi daí que partiu para chegar aos €19 mil milhões que estima necessários para requalificar todos os trabalhadores em Portugal que precisarão de apostar em novas competências ou numa mudança de carreira para se manterem ativos no mercado. Para ter uma estimativa aproximada utilizou o custo médio anual por aluno para educação superior calculado pela OCDE para Portugal, cerca de €10.600 anuais. Assumindo que demora em média um ano a requalificar a mão de obra, explica, “podemos multiplicar este valor pelos 1,8 milhões de pessoas que vão precisar de se requalificar num período de 12 anos e alcançaremos os tais €19 mil milhões de euros, o que equivale aproximadamente a 10% do PIB nacional”. Estimativas que, reforça João Duarte, são muito lineares e podem revelar-se imprecisas. Isto porque, além destes números estarem muito dependentes da velocidade que a evolução tecnológica venha a registar nos próximos anos, que ditará uma maior ou menor necessidade de reconversão, “as próprias medidas futuras de ação desenvolvidas pelos agentes envolvidos no processo tornam este cálculo exponencialmente mais difícil”, explica o docente.
Cenários hipotéticos
Foi talvez por isso que nenhum dos vários “agentes envolvidos no processo” — sindicatos, patrões ou Governo (de quem não obtivemos resposta em tempo útil) — contactados pelo Expresso acedeu a tentar realizar cálculos semelhantes. É que em matéria de reconversão profissional há visões distintas do mesmo problema, desde o cálculo do universo de trabalhadores que poderá necessitar de reconversão, às áreas que deverão absorver o maior investimento dessa reconversão, até quem deverá receber e pagar a fatura da despesa.
José Cordeiro, secretário geral adjunto da União Geral de Trabalhadores (UGT), acredita que o cálculo apresentado peca muito por défice, mas não avança outro cenário. “Todas as estimativas de necessidades de reconversão são traçadas em função da tecnologia que temos hoje, com base no ritmo de desenvolvimento tecnológico que conhecemos atualmente e tudo indica que ele se vai intensificar muito e muito rapidamente nos próximos anos”, explica o dirigente sindical. E é por isso que José Cordeiro considera muito difícil traçar uma abordagem eficaz ao problema. “A questão aqui é sabemos que vamos necessitar de requalificar profissionais, mas não sabemos com exatidão nem quem nem para quê, e isso é fundamental para o debate e para atingir consensos”, argumenta (ver texto na página ao lado).
Há todo um estudo exaustivo que deve ser feito, defende Arménio Carlos, líder da Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP). “É preciso identificar as empresas e os sectores que já estão a preparar esta transformação digital, o número de trabalhadores que é necessário reconverter, em que áreas e qual o seu potencial de empregabilidade depois dessa reconversão. Porque não chega dizer que se vai reconverter se isso não tiver uma utilidade prática”, explica. José Cordeiro corrobora e diz não saber se mesmo esse investimento na reconversão será suficiente para afastar do desemprego os profissionais em risco.
Contas feitas, quem paga?
O estudo da CIP conclui que a automação e a transformação digital das empresas coloca “desafios significativos que exigirão um papel ativo tanto por parte do Governo como do sector privado no processo de reconversão da força de trabalho” e João Duarte reconhece que “a revolução da automação pode vir a ser sentida a uma velocidade sem precedentes”. Razão pela qual, “a capacidade e rapidez na reação das empresas e do Governo são determinantes para que as perdas sejam minimizadas de um ponto de vista socioeconómico”, defende o investigador e docente da NovaSBE.
Um estudo divulgado na passada semana em Davos, durante o encontro do Fórum Económico Mundial, revela que nos Estados Unidos o custo de reconverter 1,4 milhões de americanos cujo emprego a evolução tecnológica está a ameaçar é de 34 mil milhões de dólares (cerca de €29,5 mil milhões). Nem todos os trabalhadores requalificados serão absorvidos pelas empresas, confirmando-se os receios avançados por José Cordeiro, da UGT. Segundo o documento, o sector privado conseguirá absorver apenas 25% (aproximadamente 350 mil) dos trabalhadores requalificados. Para os restantes, contabilizando os custos atuais da formação, o tempo necessário à requalificação profissionais e a perda de produtividade durante esse período, “será mais eficaz, numa perspetiva de gastos, para as empresas substituir esses trabalhadores por outros com as competências necessárias”.
O estudo conclui ainda que 86% do custo total desta reconversão será pago pelo Governo americano. As empresas só têm capacidade para assegurar 14% da conta da reconversão. Um cenário que os sindicatos recusam em Portugal. “Há uma tendência para que seja o Governo a suportar os custos desta reconversão e a nossa visão é de que são as empresas que têm de assumir a maior fatia deste encargo. São elas quem vai lucrar com o processo”, argumenta Arménio Carlos. O líder da CGTP defende que “uma parte dos lucros das empresas, obtidos como resultado da transformação digital, devem ser canalizados para financiar a reconversão dos profissionais e a sua reintegração”. E defende ainda que “os trabalhadores que veem os seus postos de trabalho extintos pela tecnologia não deverão ficar sujeitos a apoios do Estado ou reformas baixíssimas”.
Uma ideia que os empresários contestam. António Saraiva, presidente da CIP, argumenta que “muitas empresas estão já a assegurar estes custos de reconversão sozinhas, mas Estado e privados têm de estar juntos e alinhados neste desígnio”. As empresas, reconhece o líder da CIP, “são as grandes beneficiárias da transformação digital, mas juntas são o país e por isso não devem ser abandonadas nesta responsabilidade”. António Saraiva defende que são necessárias políticas públicas para apoiar esta reconversão, em contexto comunitário ou nacional. “Este não é um problema só de Portugal. É global. A Europa vai ter de definir um programa de apoios, com verbas maiores do que as atualmente alocadas à qualificação dos profissionais, para abordar este problema da reconversão. Não invalidando que possam existir também iniciativas dos próprios países, em cooperação com as empresas”.
Requalificar quem ?e para o quê “é a questão”
Tão ou mais relevante do que saber quanto custará e quem pagará a maior parcela da fatura da requalificação é onde e em quem vai ser investido o dinheiro. Por outras palavras, “quem vamos requalificar e para o quê é o cerne da questão”, defende José Cordeiro, secretário-geral adjunto da União Geral de Trabalhadores (UGT). O dirigente sindical reconhece que é inquestionável que haverá necessidade de reconversão de profissionais, mas recorda que “ninguém sabe ainda muito bem em que áreas, sectores e atividades esse investimento na reconversão de profissionais se revelará mais necessário e fundamental”.
E este não é um problema exclusivo de Portugal. O mundo inteiro está à procura do melhor caminho para abordar os desafios da automação e da revolução digital e a melhor forma de minimizar os seus impactos na destruição de postos de trabalho. As estatísticas são muitas e nenhuma favorece os humanos. Seja qual for a conta, as perspetivas de eliminação de postos de trabalho como resultado da automação são sempre superiores à criação de novas oportunidades profissionais.
Contas ao lado
Em Portugal, o estudo mais recente sobre o tema, elaborado pelo McKinsey Global Institute em parceria com a Nova School of Business and Economics (NovaSBE), a pedido da Confederação Empresarial de Portugal (CIP), traça um cenário em que 1,1 milhões de empregos serão destruídos até 2030 e cerca de 600 mil novos postos de trabalho poderão surgir nos próximos 11 anos. E embora o estudo identifique como áreas profissionais emergentes e de oportunidades garantidas os sectores da saúde, assistência social, ciência, profissões técnicas e construção, José Cordeiro mantém-se cético em relação às orientações de requalificação que daqui possam decorrer.
“É preciso que se recorde que todos os cenários que foram sendo projetadas nos últimos anos, inclusive os traçados por um estudo da Universidade de Oxford que era tido como um dos mais relevantes em matéria de perspetivas de eliminação e criação de postos de trabalho e de impacto sectorial da tecnologia, têm ficado aquém do previsto ou até mesmo acertado ao lado”, defende o secretário-geral adjunto da UGT. José Cordeiro reconhece que esta volatilidade dificulta a definição de uma estratégia eficaz de abordagem ao problema. “Olhando para as estimativas da OCDE, o que sabemos até ao momento é que cada profissional mudará de sector pelo menos cinco vezes ao longo do seu percurso de carreira. Não estamos a falar de mudar de emprego ou de profissão, estamos a falar de uma mudança de sector que pode comportar uma mudança completa nas suas competências”, realça.
E se esta perspetiva se confirmar, torna evidente que a questão da reconversão profissional não se extingue na formação de um profissional num momento de desemprego para o fazer regressar ao mercado de trabalho. “Estamos perante o cenário de aprendizagem permanente e ao longo da vida, com necessidades específicas para cada profissional em cada momento da carreira e é preciso também garantir que os agentes de formação conseguem adaptar-se a essa nova realidade”, defende.