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Parar seis meses, definir 40 anos

Parar seis meses, definir 40 anos

Pausas para viajar, conhecer universidades ou empresas fazem parte do percurso formativo de futuros trabalhadores.

17.04.2017 | Por Rute Barbedo


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Mário não desvia os olhos do telefone. Anda de um lado para o outro, entre as alas da incubadora onde pôs a crescer a sua terceira startup, a Climber, e tem os ponteiros contados para a entrevista. “40 minutos, uma hora”, limita. Assim que lhe pedimos para recuar aos tempos de estudante, relata episódios à velocidade da luz. É uma das duas características em comum com as colegas com quem se senta à mesa de reuniões. A outra é não terem um percurso linear, já que antes de saberem o lugar profissional onde iriam passar o resto das vidas, decidiram dar aulas de salsa em Teerão, ensinar inglês no Vietname ou ser um apoio informal ao ensino no Quénia. Mário Mouraz (28 anos), Adriana Correia (23) e Rafaela Leal (20) são três das cerca de 1500 pessoas que passaram pela Associação Gap Year Portugal, que apoia e promove os chamados períodos sabáticos nos momentos que antecedem decisões importantes como o ingresso no mundo do trabalho ou a escolha de um curso superior. E parar para pensar, aqui, não significa perder o movimento; é antes “uma pausa naquilo que a sociedade considera normal”, define o fundador da Climber.

Até sair da academia, Mário não tinha grandes dúvidas. Formou-se em Gestão, pós-graduou-se em Hotelaria e fez meio MBA no Peru. Seguiu-se um emprego no hotel Four Seasons (da cadeia Ritz), em Lisboa, pelo que, do alto dos seus 23 anos, o currículo já brilhava. “Mas sentia que o meu trabalho não era valorizado”, explica. A inquietação conduziu-o a Londres, de novo ao mundo dos hotéis de luxo, “até que apareceu a oportunidade de trabalhar para uma startup” ligada à área do turismo, na qual Mário ficou como responsável por mercados como o Reino Unido e Espanha. Mais uma volta: a empresa foi comprada por um gigante e Londres era, afinal, muito cinzenta.

Foi então que conheceu a AIESEC, uma das maiores organizações estudantis do mundo, e foi parar ao Irão através de um estágio numa organização não-governamental (ONG). “Paris ou Toronto, naquela altura, já não seriam desafiantes”, afirma. Às claras, deu aulas de Criatividade e Inovação; às escuras, encontrou-se com feministas, ensinou iranianos a dançar salsa, bebeu o álcool proibido e apaixonou-se. “Foram seis meses em que dormia quatro horas por dia”, conta o empreendedor.
Mas as viagens ainda não tinham acabado ali. O passaporte havia de ser carimbado pelas autoridades do Burkina Faso, país onde viveu sem cama e sem frigorífico, a comer “todos os dias a mesma coisa”. A próxima cena é Mário Mouraz a criar uma empresa em Lisboa. “Chamava-se Travel with Mario e eram guias digitais de viagens. Só que entretanto já vou na terceira startup”, acelera o gestor (a Climber, uma solução tecnológica de gestão de preços em hotelaria, prepara-se para uma ronda de capital com o objetivo de alcançar €600 mil).

A pergunta é: onde se tocam as noites curtas de Teerão e o espírito empreendedor deste licenciado em Gestão? Tudo, dirá a Associação Gap Year Portugal. “[Este tipo de viagens] é uma forma de perceber o que queremos fazer na vida, de procurar a nossa paixão”, resume Gonçalo Azevedo Silva, de 23 anos, presidente da organização, que interrompeu a licenciatura em Economia para poder combater aquilo que o perturba: “Que um miúdo com 21 anos — ou 23, como eu — escolha a carreira profissional que vai seguir até aos 70 anos. As pessoas não têm de seguir todas o mesmo caminho. Passamos a vida a ouvir coisas como ‘estuda para um dia seres alguém’ sem estarmos preocupados em sermos alguém todos os dias.”

Procuram-se pessoas ?com experiências
O mesmo grau de confiança sai da boca de Adriana Correia, quando conta que, depois de um périplo de seis meses pelo sudeste asiático, voltou para Portugal com a noção de que o mais permanente da vida é a impermanência dos dias. Tradutora independente e membro do departamento de apoio a todos os que querem praticar esta paragem (conhecidos como gappers), afirma: “Se tiver de ir na próxima semana dar aulas de inglês para o Vietname, vou. Hoje não tenho qualquer problema em despedir-me e mudar.” Após as formações em Ciência Política e Gestão de Recursos Humanos, quando já trabalhava numa consultora, decidiu lançar-se para a Índia com uma lista de países que gostava de visitar e uma noite reservada num alojamento barato de Bombaim. “Com a licenciatura que tirei, as oportunidades são poucas, tirando estágios não remunerados”, concretiza Adriana.

Discutir com a Gap Year como “largar as amarras” deu-lhe “alguma segurança”. “Caso surgisse alguma dúvida, eu sabia que havia uma associação especializada que estava lá para apoiar. Ainda assim, eles propuseram-me um plano, mas não segui nada daquilo. A minha vida sempre foi muito formatada e eu precisava de viver uma experiência minha”, contextualiza. Duas semanas após ter regressado a Portugal, recebeu o contacto de uma multinacional da área de recursos humanos. “Eles procuravam alguém sénior. Eu sabia que não era, mas fui na mesma”, relata Adriana, prosseguindo: “Fiquei. E disseram-me claramente que foi por causa do meu gap year, porque uma viagem deste género provava que eu estava preparada para enfrentar dificuldades.”

Ao contrário de Mário e de Adriana, Rafaela mantém o dedo no gatilho da pausa. “Tenho 20 anos e sinto que ainda estou no meu caminho.” Um dia meteu na cabeça que queria conhecer a Eslováquia. Desde então, intercala a formação em Relações Internacionais com viagens — na sua grande maioria, inseridas em projetos com organizações não-governamentais e associações de direitos humanos — que têm permitido “abrir os olhos para a realidade”, adquirir competências de comunicação e descobrir vocações. “Fui para Nairóbi com a missão de fazer jogos, atividades, com mais de 200 miúdos, mas a minha causa acabou por ser fazer com que eles comessem”, conta Rafaela Leal, explicando que a teoria (e os projetos desenhados à distância) nem sempre bate certo com as necessidades do plano real.

Se isto é um ano sabático? Formalmente não, mas a Associação Gap Year também explica que “não existem modelos fechados”, motivo pelo qual a organização está a dar maior atenção à personalização deste tipo de projetos. No caso de Adriana, a estudante enquadra: “Vivo a minha vida com base nas viagens que fiz; foi com elas que fui ganhando maturidade. Passei de uma miúda do 12º ano que queria ser piloto da Força Aérea para alguém que acha que quer seguir fotojornalismo e dar formação em direitos humanos.” Os interesses são muitos, as viagens já ultrapassaram a dezena num ano letivo, mas o plano é consistente: “Quero sustentar-me com as minhas paixões.”

Gappers são “pessoas ?que sabem adaptar-se”

“Há muita pressão para tomar decisões no momento da escolha de uma formação superior e muitas vezes elas são tomadas à última hora, sob critérios no mínimo suspeitos, como um primo ter dito que aquele curso é muito interessante. O mesmo acontece depois de uma licenciatura, em que muitas pessoas escolhem mestrados só para não irem para o desemprego, quando, para muitos empregadores, um mestrado na mesma área não diz nada.” São estes os dois principais momentos, segundo o presidente da Associação Gap Year Portugal, Gonçalo Azevedo Silva, que podem conduzir a um período sabático ou, numa linguagem mais universal, a um gap year.
No entanto, acredita, ainda existem preconceitos acerca das mais-valias que esta prática pode trazer tanto na definição do caminho profissional como em termos de empregabilidade.

Se uma pausa na carreira permite aceder a um dos bens mais relevantes para a sociedade — o tempo — e sair da ‘zona de conforto’, também permite atestar que “estas pessoas estão preparadas e sabem adaptar-se aos problemas”. Como refere Gonçalo Azevedo Silva, “uma viagem é isso: problemas atrás de problemas”. Para lá dos obstáculos, este tipo de experiências permite desenvolver competências além do plano técnico, como a comunicação, a capacidade de relacionamento interpessoal, a confiança e a agilidade na resolução de situações imprevistas que, segundo o presidente da associação, são cada vez mais valorizadas pelos empregadores da atualidade. “Aquela questão de selecionar pessoas pelas notas que têm na faculdade está a mudar”, exemplifica o estudante de Economia.

Entre as atividades da Gap Year, destacam-se os programas de experiências académicas (após a conclusão do ensino secundário ou da licenciatura, é possível frequentar por um tempo determinado diferentes universidades e licenciaturas, no sentido de perceber antecipadamente qual é “a escolha certa”) e de experiências profissionais (em que “ser a sombra de um trabalhador” ou estagiar em empresas são modelos que podem funcionar como uma “introdução ao mercado de trabalho”). A frequência de um ano académico no estrangeiro ou a participação em projetos de voluntariado são também alternativas.

Como iniciativas pontuais, a associação promove o Encontro Nacional de Gappers (se a primeira edição teve três participantes, a deste ano deverá receber mais de 500, a 22 e 23 de abril); e um concurso anual, financiado pela Fundação Lapa do Lobo (que financiou a viagem de Gonçalo Azevedo Silva e alavancou, assim, a criação da associação) e apoiado pela TAP, em que é oferecida uma bolsa de €5000 (para candidaturas individuais) ou de €6500 (no caso de ser conjunta) para apoiar estas viagens-pausa. As inscrições estão abertas até 15 de junho.



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