A aprovação do Decreto-Lei 57/2016, a 29 de agosto, deveria ter atenuado o debate acerca da precariedade dos doutorados em Portugal mas, desde então, as reuniões entre o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, instituições de ensino e associações prolongam-se no sentido de garantir “o acesso à carreira” dos cientistas, conforme definiu no início do ano o ministro Manuel Heitor. A legislação preconiza o regime do emprego científico, prevendo, entre outras medidas, a transição de bolsas de investigação para contratos de trabalho, uma realidade que 77,8% dos investigadores desconhece, segundo um inquérito realizado em 2014 pela Associação de Combate à Precariedade. Os restantes estão maioritariamente enquadrados em instituições públicas, como universidades, e uma pequena parte é absorvida pelo tecido empresarial.
Sobre a contratação reduzida de doutorados (para atividades de investigação) pelo sector privado, há posições distintas. Cláudia Botelho, presidente da Associação Nacional de Investigadores em Ciência e Tecnologia (ANICT), reconhece que “muitos colegas gostavam de ir para empresas" mas ainda existem preconceitos quanto ao papel e à figura do investigador em Portugal. “Há o preconceito de que os investigadores não produzem e uma questão não tem passado para o exterior: nós trabalhamos, todos os dias. Temos um horário flexível, mas isso quer dizer que também podemos vir para o laboratório à noite”, afirma. Por outro lado, a responsável lamenta que o mundo empresarial nem sempre consiga antever o retorno da investigação de longa duração, continuando a “pensar em tudo ‘para ontem’” e descartando a necessidade do desenvolvimento de produtos diferenciadores num mercado global.
Mas o reconhecimento das vantagens que o sector privado tem em empregar um doutorado parece estar a ganhar corpo. “Há uns anos havia a ideia de que a investigação devia ser feita em universidades e depois dava-se a transferência de conhecimento para empresas, mas com a abertura de centros tecnológicos e a criação de spin-off por doutorados”, bem como a existência do Sistema de Incentivos Fiscais à Investigação e Desenvolvimento Empresarial (SIFIDE), a imagem do investigador numa organização com metas de negócio é menos improvável. É este o quadro que o Instituto de Biologia Experimental e Tecnológica — iBET, uma organização privada sem fins lucrativos, ou a Maxdata, que produz soluções informáticas para a área da saúde, visualizam.
Dos 150 trabalhadores do iBET, 54 são doutorados; em 2016 houve 20 contratações; e até ao final deste ano o instituto quer empregar seis a oito doutorados. O objetivo principal tem sido “reforçar as equipas envolvidas em projetos com multinacionais farmacêuticas e, mais recentemente, em trabalhos ligados à indústria agroalimentar”, detalha a presidente, Paula Alves. Ainda assim, não é por ser externa à academia que a equipa não aposta na investigação fundamental. “O crescimento na área farmacêutica é uma ‘almofada’ para outras áreas que acreditamos que daqui a cinco a 10 anos nos podem diferenciar. Temos projetos financiados internamente para podermos estar na crista da onda”, explica a responsável, que defende que sem quadros altamente qualificados a inovação desmorona. A vontade, por isso, é de “reter estas pessoas no país”, refere Paula Alves, aludindo à “fuga de cérebros” para o estrangeiro registada nos últimos anos.
Títulos não definem salários
Mas é possível enquadrar o talento científico português no plano privado? Para a presidente do iBET, essa é a tendência, até porque, embora a um “ritmo lento”, as empresas sentem cada vez mais a necessidade de apostar em investigação e desenvolvimento para serem competitivas. E “os doutorados têm um conjunto de competências que os diferencia, como a capacidade de encontrar soluções para novos problemas; de comunicação, que resulta do treino de apresentações públicas; e de gestão, porque lideraram equipas”.
Ao mesmo tempo que “há muitos investigadores interessados em formar as suas próprias empresas”, também “os doutoramentos já têm cadeiras vocacionadas para áreas de negócio e empreendedorismo, como acontece na [Universidade] Nova”, frisa o responsável de marketing e desenvolvimento de pessoas do iBET, Gonçalo Real. Resta que as expectativas profissionais e salariais dos investigadores estejam em linha com o posicionamento do sector privado. Sobre este aspeto, Paula Alves deixa uma nota: “As pessoas devem perceber que não são remuneradas pelos títulos que têm mas pela sua responsabilidade e mérito.” No entanto, não é em todos os domínios que a balança dos doutorados pesa mais para o lado da oferta.
Se em Portugal faltam licenciados em informática, encontrar mestres e doutores nesta área torna-se uma tarefa complexa. Paulo Sousa, diretor-geral da Maxdata, confronta-se com a “oferta muito residual” de pessoas com este perfil “que queiram trabalhar em empresas portuguesas”. Da vaga de tentativas de recrutamento iniciada em setembro, chegaram-lhe às mãos cerca de 20 candidaturas; e dos 30 colaboradores da empresa (criada em 1989) resulta um saldo microscópico: “Apenas conseguimos contratar um único doutorado.” Durante as entrevistas, Paulo Sousa percebeu que “algumas [pessoas] pensavam que iriam passar grande parte do tempo a fazer artigos científicos, mas embora na empresa haja espaço para isso, pretende-se uma abordagem mais polivalente”, neste caso, que ajude a melhorar a experiência de utilização do software CLINIdATA (um conjunto de soluções de gestão de laboratório nas áreas das análises clínicas, anatomia patológica e no controlo de infeções hospitalares, adotada por 80% dos hospitais públicos nacionais).
A dificultar a tarefa de recrutamento, a expectativa salarial é, de uma forma geral, “muito elevada logo à entrada”, podendo chegar aos €60 mil, conforme experienciou a Maxdata, que tem como referência o ordenado de um professor auxiliar (cerca 42 mil euros por ano). Se a contratação de um doutorado tem “um impacto muito positivo”, também é necessário “respeitar a pirâmide salarial da empresa”, defende o diretor, que continua à procura de informáticos especializados prontos a fazer crescer a propriedade intelectual e industrial da organização privada.