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22 mil portugueses trabalham sem salário

22 mil portugueses trabalham sem salário

O trabalho em negócios familiares empurra muitos para a precariedade

14.08.2018 | Por Cátia Mateus


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Pedro e Rita são os rostos de uma estatística, a dos “trabalhadores familiares não remunerados”. Todos escolheram não divulgar a sua verdadeira identidade, mas personificam o que o Instituto Nacional de Estatística (INE) define como “indivíduos que exercem uma atividade independente numa empresa orientada para o mercado e explorada por um familiar, não sendo contudo seus associados nem estando vinculados por um contrato de trabalho”. Em 2017, eram 22 mil em Portugal. No primeiro trimestre deste ano, a contabilização do INE já soma 21,5 mil portugueses que trabalham em negócios familiares, sem remuneração ou pelo menos sem que os empregadores a declararem. Quem são estes trabalhadores, que qualificações têm e quantas horas trabalham permanece um mistério para os economistas, sindicatos e até para a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT).

Durante três anos, Pedro “deu uma ajuda” na oficina do pai. Formou-se em Design e saiu para o mercado de trabalho em 2014, em plena época de crise. A dificuldade em encontrar um emprego numa área com oferta de candidatos abundante acabou por conduzi-lo à oficina do pai. “Ele precisava de ajuda e eu sempre gostei do negócio dos carros. Achei que como não estava a conseguir nada em design, pelo menos ganhava algum dinheiro”, recorda.

Trabalhava sem contrato, no mesmo horário de trabalho que os restantes trabalhadores mas, ao contrário dos outros empregados, o salário só chegava pontualmente. “Quando a faturação permitia, o meu pai dava-me qualquer coisa. Não era propriamente um salário”, confessa. Subsídios de Natal ou férias e descontos para a Segurança Social também não existiam. Quando Pedro decidiu ir viver com a namorada o cenário complicou-se. “Não só não dava para ter um salário certo ao final do mês como tivemos dificuldade em conseguir arrendar uma casa porque eu não tinha nada declarado”, explica Pedro, que entretanto encontrou emprego na sua área, numa agência de comunicação.

Rita passou por dificuldades semelhantes. Concluiu a licenciatura em Psicologia a trabalhar no restaurante da família a troco de uma mesada que “estava muito longe de ser um salário, até porque nem era regular”, recorda acrescentando que “é um negócio de família e era dado adquirido que todos ajudavam”. Trabalhava todos os dias, reforçando a equipa dos almoços antes de ir para a universidade. Também não tinha subsídios, nem o seu trabalho era declarado. Chegou a ser “apanhada” numa ação inspetiva da ACT mas acabou por abandonar o negócio da família quando conseguiu emprego na área dos recursos humanos.

Quem sãos os portugueses ?sem salário?

Pedro e Rita representam uma franja de trabalhadores não remunerados qualificados, mas nem todos o são. Na verdade, os dados do INE não fornecem grandes pistas sobre o perfil destes trabalhadores. Sabe-se que para integrar esta estatística é condição determinante que, na semana de referência, as pessoas tenham trabalhado pelo menos 15 horas. O Expresso solicitou ao INE dados desagregados sobre a idade e nível de qualificação destes profissionais. Mas a desagregação máxima facultada pelo instituto só permite concluir que a esmagadora maioria destes profissionais tem entre 20 e 64 anos. Ou seja, está na faixa de acesso ao mercado de trabalho após a qualificação secundária ou superior e no emprego sénior e não no escalão dos 15 aos 19 anos, onde este tipo de trabalho se poderia associar, por exemplo, aos típicos trabalhos de verão.

Em matéria de qualificação, os dados do INE também não dão grandes pistas, sobretudo para os anos mais recentes. O Instituto de Estatística distribui estes profissionais, de um modo quase uniforme, pelos graus de qualificação ao nível do ensino básico, terceiro ciclo e secundário/pós-secundário. Dos 22 mil trabalhadores de empresas familiares não remunerados identificados em 2017, 12,8 mil enquadravam estes grupos de qualificação. Os restantes, o INE admite não conseguir caracterizar. “O desvio do padrão de qualidade/coeficiente de variação é demasiado elevado”, justifica o INE.

Economistas e sindicatos partilham da mesma dificuldade. João Cerejeira, economista e docente da Escola de Gestão e Negócios da Universidade do Minho, confessa o seu interesse por estas matérias e até chegou a realizar um trabalho de campo para analisar o fenómeno. O docente reconhece que “há uma imensa zona cinzenta entre estes trabalhadores, que representam aquela franja da população que oscila entre a atividade e a inatividade”. Por outras palavras, são pessoas que em situação de desemprego se viram para os negócios da família, trabalhando sem um vínculo de trabalho legal.

Os números do INE, reconhece João Cerejeira, são um primeiro indicador mas “na verdade não conseguimos saber com exatidão quantos profissionais sem remuneração ou com salários informais existem em Portugal”. Poderão ser muitos mais. O conceito de “apoio familiar” é dúbio. João Cerejeira admite que esta realidade não se restringe ao universo das empresas familiares, mas acredita que a maioria destes profissionais estejam concentrados nas áreas da construção, turismo, restauração ou agricultura, que registam maiores oscilações nas necessidades de pessoal fruto da sazonalidade. Em última análise, admite o economista, “estamos a falar de trabalho clandestino, não declarado e não remunerado, o que constitui uma ilegalidade em Portugal”.

O economista Francisco Madelino, que liderou o Instituto do Emprego e Formação Profissional, corrobora a visão, mas acredita que “o cenário do emprego não remunerado em empresas familiares mudou muito na última década” fruto não só das alterações do mercado como de uma maior profissionalização dos modelos de gestão das empresas familiares. “Quando há alguns anos havia muito desemprego, as pessoas viravam-se para a agricultura, o comércio, a restauração e serviços e iam ajudar os familiares nos seus negócios”. Isto, reconhece, Francisco Madelino, “aumentava ficticiamente o emprego”.

O cenário atual é distinto. “A extinção progressiva dos pequenos negócios de comércio local, com forte cariz comercial, para dar lugar às grandes superfícies e a progressiva afirmação de um novo modelo de agricultura, muito mais empresarial e profissionalizada, alteraram por completo o perfil e a dimensão deste grupo de profissionais”, defende o economista. E os números comprovam a sua teoria. Em 2008, mostram os dados do INE, Portugal somava 50,5 mil trabalhadores de empresas familiares não remunerados. Mais 28,5 mil profissionais do que tem hoje.

Os limites dúbios da legalidade

A União Geral de Trabalhadores (UGT) tem também procurado acompanhar a evolução deste grupo de profissionais. Paula Bernardo, secretária-geral da UGT, reconhece que “este é um indicador muito dúbio e mesmo a sua análise em função dos ciclos económicos é difícil de enquadrar”. Ainda assim, admite que “uma parte destes profissionais poderá enquadrar situações de trabalho não declarado, mas não é fácil de comprovar isto quando falamos de trabalho para a família”. A secretária-geral adjunta acrescenta que este grupo de trabalhadores rondará os 20 a 30 mil em Portugal, sendo muito residual no universo total dos trabalhadores, e “em termos estatísticos é muito difícil desagregar estes dados de modo a conhecer melhor esta população e perceber se estamos ou não numa situação de ilegalidade e de trabalho não declarado”.

Em 2016 (últimos dados disponíveis), a ACT identificou em território nacional 3527 situações de trabalho não declarado, na sequência de 8858 visitas realizadas. São mais 936 casos do que em 2014, embora o número de visitas realizadas pela ACT até tenha diminuído em 2016 e o número de empresas acompanhadas também. A autoridade não esclarece quantos destes profissionais consagravam casos de trabalhadores de empresas familiares não remunerados, já que “não dispõe de dados desagregados por sector de atividade”. Mas, em resposta ao Expresso, reforça que “a ACT tem dado especial enfoque ao longo dos anos ao fenómeno do trabalho não declarado, no sentido de incutir uma mudança nas atitudes e comportamentos”. No âmbito deste artigo, o Expresso tentou por diversos meios obter esclarecimentos do presidente da Associação Portuguesa das Empresas Familiares, Peter Villax, sem sucesso.

 

Subida do salário ?mínimo aumenta ?‘não remunerados’

 

Com a recuperação progressiva do mercado de trabalho, o número de profissionais não remunerados em empresas familiares foi descendo à medida que estes trabalhadores conquistavam melhores condições de empregabilidade. E esse é o comportamento mais normal do mercado. Mas em 2016, já em fase de recuperação económica e com o desemprego numa trajetória descendente, a dimensão do universo dos trabalhadores familiares não remunerados atingiu um novo pico, com 29 mil trabalhadores.

Num só ano e em plena recuperação económica, Portugal ganhou seis mil trabalhadores não remunerados. Como se explica este aparente contrassenso? Com uma repentina dinâmica económica registada em sectores como o turismo, mas também com o aumento do salário mínimo nacional de €505 para os €530 nesse ano. E o cenário pode voltar a repetir-se com uma nova subida do salário mínimo, acredita o economista João Cerejeira.

“É natural que numa primeira fase de criação de emprego estas formas atípicas de emprego aumentem. É preciso uma ajuda extra para fazer face ao aumento de procura no turismo, por exemplo, e recorre-se aos familiares e a salários informais”, explica o economista João Cerejeira.

Novo aumento a caminho?

O que não é natural é que ao fim de um tempo estes profissionais não passem para relações laborais mais estáveis, com contratos de trabalho regulares, defende Francisco Madelino. O economista recorda que durante muito tempo, em contextos de elevado desemprego, a utilização destes trabalhadores familiares não remunerados em sectores como a agricultura, restauração ou turismo aumentava, ficticiamente, a taxa de emprego nacional.

E anos houve, entre 2008 e 2010, em que o universo dos profissionais não remunerados agregava entre 50,5 mil e 48,2 mil portugueses. A dimensão deste grupo de trabalhadores tem vindo a diminuir para os atuais 21,5 mil profissionais, mas João Cerejeira acredita que uma nova subida no salário mínimo possa promover um novo aumento.

“O que os estudos nos dizem é que quando aumenta o salário mínimo, o desemprego pode não diminuir no imediato mas aumentam estes contratos marginais à lei”, explica o economista e docente da Escola de Gestão e Negócios da Universidade do Minho. A acontecer, o aumento deverá ser transitório, como tem demonstrado ser à luz dos dados do Instituto Nacional de Estatística.



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