Fernanda Pedro
O que têm em comum a Ana,
a Raquel e o António? Todos eles sofrem ou já sofreram
"na pele" a humilhação de verem destituídas
as funções profissionais para as quais foram contratados.
Disponibilizaram-se para contar ao EXPRESSO as suas histórias
mas por receio de represálias por parte da empresa onde trabalham
e pelo facto de se encontrarem com processos na justiça,
nenhum quis revelar a sua verdadeira identidade, utilizando por
isso nomes fictícios.
Todos acusam a entidade empregadora de discriminação
moral nos seus locais de trabalho, considerando mesmo terem sido alvo
de terrorismo psicológico.
Diariamente fazem o mesmo trajecto para ocuparem um gabinete despejado
de equipamentos e de trabalho. Só as paredes, o computador e o
telefone que nunca toca fazem parte do dia a dia destes trabalhadores.
Com as carreiras profissionais destruídas, só através
de ajuda psiquiátrica conseguem deslocar-se todos os dias para
o emprego. Da humilhação passaram à revolta e sem
terem mais nada a perder, decidiram avançar para tribunal acusando
a entidade empregadora de assédio moral.
Que o diga Ana, que aos 48 anos de idade e com 30 de serviço num
banco sente-se completamente humilhada e desesperada desde que em 1998
lhe retiraram por completo todas as funções dentro da empresa.
No seu gabinete na Baixa de Lisboa, tem apenas as paredes, uma secretária,
um telefone e um computador. Todos os dias às oito horas da manhã
entra ao serviço mas até sair às 18h, não
vê ninguém, não recebe um único telefonema
e ninguém lhe dá uma única tarefa para realizar.
Ostracizada pelos seus chefes hierárquicos e pelos próprios
colegas, Ana não aguentou a pressão. Revoltada, partiu para
a barra do tribunal. "Durante muito tempo não contei a
ninguém a situação em que me encontrava, e isto por
sentir vergonha", revela. E a baixa auto-estima não é
por se sentir incompetente em relação ao seu trabalho até
porque quer pôr em prática os conhecimentos e a experiência
profissional adquiridos. "A minha progressão de carreira
foi muito bem sucedida e conquistei o cargo de administradora da empresa",
recorda. Todavia, foi devido a algumas discordâncias em relação
a um colega que originou toda esta situação e "a
partir daí começou a perseguição dentro da
empresa até chegar ao estado actual em que me encontro".
Para Raquel, secretária de direcção de uma empresa
a situação é mais recente. "Tudo começou
no ano passado, quando mudou o Governo. Os antigos directores saíram
e os seus mais directos funcionários foram quase todos destituídos
de funções e eu também não escapei a essa
situação", revela.
Em todos os 25 anos de serviço esta profissional nunca faltou ao
trabalho, ganhou prémios de mérito e assiduidade mas nada
disso foi levado em consideração no momento da despromoção.
Hoje, está colocada num gabinete a trabalhar para uma pessoa também
desprovida de funções e até agora só tirou
apenas duas fotocópias. "Passei de bestial a besta",
lamenta.
Também esta profissional não deixou que este assunto ficasse
esquecido e avançou com um processo contra a empresa alegando assédio
moral. Mas com as pressões a que está sujeita, não
é de admirar que Raquel precise da ajuda de um psiquiatra para
ultrapassar a situação em que se encontra.
Na opinião da médica psiquiatra, Ana Sofia Nava, este tipo
de conflito laboral, é sentido pelas pessoas como sendo uma ameaça
narcísica profunda, em que a auto-estima, - o conceito que cada
um tem de si próprio - é posta em causa. "Um indivíduo
que passe por uma situação destas, pode descompensá-la
com um surto psicótico, uma depressão, uma perturbação
de ansiedade, fóbica, de pânico ou psicossomática",
revela.
Esta especialista, adianta ainda que de um modo geral, as perturbações
psicóticas necessitam de apoio hospitalar, com eventual internamento.
As perturbações mais neuróticas, (como a depressão
ou a ansiedade) e as perturbações psicossomáticas
(aparecimento de doenças físicas) necessitam de apoio ambulatório.
"Em todos os casos é de ponderar a utilidade de uma terapêutica
psicofarmológica, bem como também deve ser ponderado um
apoio psicoterapêutico ", salienta.
Segundo aquela responsável, não é possível,
por muito que as pessoas se esforcem conscientemente por fazê-lo,
concretizar rupturas entre o profissional e o pessoal. Bem como é
impossível fazer um corte entre o psíquico e o somático.
"Significa, que os distúrbios emocionais provocados por
este tipo de situações, vão ter óbvias repercussões
na vida afectivo-relacional, nas competências cognitivas exigidas
pelas actividades profissionais, e ainda repercussões somáticas
e físicas", explica a psiquiatra.
António, é uma dessas pessoas que tem de recorrer à
ajuda de um tratamento psiquiátrico, porque não aguentou
as pressões laborais a que esteve sujeito no final da sua longa
carreira na banca. "Depois de 30 anos como chefe de serviços,
a administração do banco fez uma restruturação
na empresa e decidiu 'injectar' sangue novo e dar os lugares de chefia
a pessoas mais jovens", lembra.
E como António, mais outros 40 profissionais da empresa ficaram
de um dia para o outro, rechaçados das suas habituais funções.
Do seu gabinete particular, passou para uma sala partilhada por mais pessoas.
Passados tantos anos com poderes de decisão, tornou-se um mero
empregado onde lhe era apenas destinado introduzir dados no computador.
Para além da humilhação a que esteve sujeito, António
era constantemente chamado à administração para negociar
a reforma, com condições que não se ajustavam aos
seus interesses. Só depois de não aguentar mais as coacções
psicológicas a que era sujeito, António, o último
trabalhador resistente às pressões da administração,
baixou os braços, decidiu aceitar as condições propostas
pela empresa e reformou-se.
Mas a desistência pela justiça foi temporária. Depois
de pensar mais friamente sobre o assunto, António decidiu processar
o banco, e a ele juntaram-se mais 40 colegas nas mesmas condições.
"O processo diz respeito ao incumprimento da lei por parte da
empresa nas regalias a que temos direito e não pelo assédio
moral a que fui sujeito. Todavia, este processo deixou-me marcas psicológicas
profundas. A sensação de frustração, de incapacidade
total e de desmoralização, é difícil de ultrapassar",
salienta.
Estas histórias são alguns exemplos de tantas outras que
se escondem em silêncio no mercado de trabalho português e
em todo o mundo. Em muitos países, o assédio moral já
faz parte da lista de muitos dos incumprimentos laborais praticados pela
entidade patronal e defendidos através da lei.
O Brasil é um exemplo de quem tem levado a sério este tema
e não é portanto de estranhar que já existam estudos
relacionados com este assunto. Foi criado inclusive o site www.assediomoral.org
onde o trabalhador pode ter acesso a todas as informações
relativas a este tema.
Em Portugal, o tema de assédio moral não está ainda
muito debatido e só aos poucos começa a ganhar expressão,
quer em termos sociais ou políticos. Em 7/12/2000, uma proposta
de lei apresentada pelo Partido Socialista, (Projecto de lei nº 252/VIII:
Protecção laboral contra o terrorismo psicológico
ou assédio moral) ficou apenas em papel e nunca chegou a ser aprovada.
Depois disso nada mais foi feito, o assunto ficou esquecido.
Todos se queixam de que não têm leis necessárias que
os proteja de uma situação desta natureza e nem os artigos
22 e 23 do novo Código de Trabalho, referente à Proibição
de discriminação e Assédio, ou o artigo 120 com as
garantias ao trabalhador e que se referem à ocupação
efectiva do trabalhador, os deixam mais optimistas em relação
à sua situação laboral.
Mas para Luís Gonçalves da Silva assessor do secretário
de Estado do Trabalho, o Código de Trabalho vem dar um contributo
a este tipo de problemas com que muitos trabalhadores se debatem actualmente.
"Existe a partir de agora um definição expressa
de assédio moral e que pode vir a beneficiar os trabalhadores nesta
situação. Pelo menos, podem sentir-se mais apoiados para
denunciarem estes casos. Talvez a partir de agora as pessoas se libertem
de certos receios. Todavia, também sei que o assédio é
um problema silencioso", refere.
E Luís Gonçalves da Silva também concorda que desde
sempre este foi um problema intrínseco ao mundo laboral "porque
desde que existe trabalho há assédio", esclarece.
Contudo, este responsável mostra-se optimista quanto à aplicação
do Código de Trabalho, "porque este consagra a ocupação
efectiva do trabalhador, facto que tem consequências ao nível
do código penal. Ou seja, neste enquadramento legal o agressor
está a praticar um crime e pode ser penalizado". Por isso,
aquele especialista alerta para que os trabalhadores reajam e não
se deixem ficar no silêncio porque existem mecanismos legais para
os defender.
Já para Natália Campos, advogada especialista na área
do trabalho e sócia do escritórios de advogados de Garcia
Pereira, o novo Código de Trabalho não altera a presente
situação e os tribunais também não sabem dar
o respectivo relevo em relação a este tipo de problemas.
"O novo código não acrescenta nada de novo, veio
apenas escrever o que já existia. Os mecanismos legais são
os mesmos, por isso as garantias não mudaram", contrapõe.
O argumento daquela advogada remete para o Direito de Ocupação
Efectiva, consagrado nos artigos nº58 e nº59 na Constituição
da República, e no Decreto-lei nº 49/408 de 24/11/69. "O
artigo 59 relativo ao direito dos trabalhadores é o nosso suporte
legal para mover uma queixa à entidade patronal. O assédio
pode originar uma queixa crime, porque uma situação destas
acaba na maioria das vezes na destruição da vida de uma
pessoa", explica Natália Campos.
Manuel Ferreira Monteiro, antigo director regional de várias dependências
do Crédito Predial Português, não esconde a sua identidade
e revelou ao EXPRESSO a sua história. Durante 30 anos, dedicou-se
de corpo e alma ao seu trabalho. Foi destacado pela empresa para abrir
e dirigir sete dependências do banco em todo o país. "Pus
sempre o Banco á frente da família. A minha mulher e os
meus filhos acompanharam-me sempre e por isso, tiverem de se sujeitar
a mudar constantemente de terra e de amigos", revela Manuel.
Nunca faltou um dia sequer em todo o seu tempo de serviço e de
um momento para o outro, a administração do Banco elaborou
uma lista para dispensar alguns trabalhadores. Retiraram-lhe o gabinete,
os telefones, as funções e só ficaram as pressões
para sair da empresa. "Durante um ano estive debaixo de terrorismo
psicológico e o mais incrível é que vim embora com
uma reforma por invalidez. Com 56 anos, cheio de vontade para trabalhar
e ser considerado inválido é de facto, um fardo muito pesado
para qualquer pessoa", desabafa com desconsolo.
Reformado à força, este profissional não escapou
a uma depressão e que ainda hoje precisa de acompanhamento médico.
"A revolta interior é muito grande. Tenho a certeza do
dever cumprido e sinto a ingratidão do Banco", salienta.
Manuel não ficou de braços cruzados e colocou um processo
na justiça contra o banco, por assédio moral, terrorismo
psicológico e violência no trabalho.
A esperança agora reside no novo Código do Trabalho. Mas
será este instrumento legal uma arma eficaz para os trabalhadores
que sofrem na "pele" este tipo de pressões quebrarem
o silêncio e fazerem ouvir as suas queixas junto das barras dos
tribunais?