A Universidade Católica tem um grupo de estudantes muito especial: são 24 alunos, todos surdos, que estão a frequentar a primeira licenciatura em Língua Gestual Portuguesa (LGP), a única no país a ser totalmente ministrada neste tipo de comunicação e com respeito pelos valores partilhados por esta comunidade.
Coordenada por José Lagarto e Ana Mineiro, esta licenciatura do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa (UCP) quer-se revolucionária para as novas gerações. Um orgulho para Ana Mineiro (em destaque na foto de capa): “Sabemos que o curso vai valorizar a comunidade. Contam-se com os dedos de uma mão o número de surdos com formação superior em Portugal, por isso o nosso sonho é, daqui a uns anos, ter estes alunos a ensinar na universidade e a serem eles a tomar conta desta licenciatura. Além disso, eles vão ser professores de pleno direito e poderão integrar as escolas de referência, do básico ao secundário, através do apoio que já temos do Ministério da Educação ”.
Para os alunos que se encontram atualmente a frequentar o primeiro ano, esta está a ser uma experiência plena. Ema Gonçalves é dos Açores, da ilha de São Miguel e o seu entusiasmo e esforço financeiro conseguem trazê-la a Lisboa em cada 15 dias, ou na pior das hipóteses, uma vez por mês. No resto do tempo, as aulas são realizadas à distância através de uma plataforma e-learning e em conferências on-line com os professores. “Já antes trabalhava como formadora de LGP mas sempre quis obter o nível académico que me permitisse se professora. Estar aqui na Católica está a dar-me muita força e sentido de responsabilidade. E o conhecimento que temos acumulado tem sido muito importante e por vezes até arrepiante. Custou-me saber, por exemplo, na disciplina ‘História da Educação dos Surdos' que no Egito e em outras sociedades mais antigas, os surdos eram automaticamente deitados ao rio”.
Se as atrocidades acabaram, a verdade é que a realidade está bem longe de ser perfeita. Amílcar Morais, colaborador da Católica em projetos de investigação e também a frequentar esta licenciatura, lembra que a comunidade surda há muito que é vista apenas na perspetiva médica, sendo relegado para segundo plano a visão sócio cultural, o que deixa Portugal bem atrás dos países nórdicos, do Brasil ou dos Estados Unidos. “Os médicos colam o rótulo de deficientes às pessoas surdas, porque se cingem à ausência de audição, parcial ou profunda. Quando uma criança surda nasce, a preocupação médica incide apenas na deficiência, na reabilitação, na oralidade, na terapia da fala. A criança segue pois, este caminho e não adquire uma língua em concreto, pois a língua oral não é natural na pessoa surda”, aponta Amílcar Morais.
Para o universitário que também já foi formador, os médicos poderiam ter um papel preponderante na informação sócio cultural que chega às famílias. “É fundamental encorajar as crianças a aprender língua gestual desde cedo, que os pais aprendam também, de forma a que o desenvolvimento da criança possa ser absolutamente natural”.
É com esta mudança de mentalidades que Amílcar sonha, esperando que ele e os seus colegas, uma vez terminada a licenciatura, consigam fazer a diferença. Junto do ministério da Educação, junto das escolas, junto da sociedade portuguesa. “Porque tendo o grau académico, não vai haver desculpas para nosso olharem de cima. Queremos respeito pela cultura e valores da comunidade surda”. Um entusiasmo que será partilhado por mais alunos a partir de Outubro. O curso já abriu candidaturas para o próximo ano e as inscrições estão a decorrer a bom ritmo.
Gestos que valem por mil palavras
A Licenciatura em Língua Gestual Portuguesa foi coordenada pelos professores Ana Mineiro e José Lagarto e desenvolvida por uma equipa multidisciplinar de toda a universidade Católica da qual fazem parte especialistas nas áreas das Humanidades, sobretudo da Linguística, das Ciências da Educação, das Ciências Neurológicas. Uma envolvência que Ana Mineiro destaca: “Toda a universidade abraçou este projeto. O curso juntou sinergias de três faculdades em proveito dos surdos”. A montagem do “e-learning”, por exemplo, esteve a cargo de um departamento da Faculdade de Educação e o guião para transformar os manuais em DVD foi feito nas Ciências Humanas. Inspirados num serviço análogo a funcionar na Universidade Federal de Santa Catarina, no Brasil, a equipa académica construiu matérias base, com conteúdos em português e depois mediatizados em linguagem gestual, sendo a tradução feita por um surdo a quem foi explicada, em detalhe, a matéria. É apoiado por 26 manuais bilingues em português e LGP, editados em papel e acompanhados de DVD. Mas para quem está no Continente há ainda um registo presencial na faculdade, de 15 em 15 dias. “E eles adoram vir e estar todos juntos”, conta.
Para os alunos que compõem o primeiro contingente foi criado um “blog”, que lhes permite comunicar entre si e com os docentes e coordenadores do curso, o que originou uma catadupa de visitas “on line” e um “intenso entusiasmo”.
A comunidade surda em Portugal
Estima-se que existam 33 mil surdos em Portugal. A Constituição da República reconhece, desde 1997, que a LGP é uma língua oficial, estando previsto que haja ensino bilingue para surdos, mas o facto é que não há surdos formados especificamente para essa missão. Há intérpretes, mas não é a mesma coisa. “Eu não tenho nada contra os intérpretes. Mas não é a língua nativa deles e uma coisa é ser nativo, outra é saber fazer uma tradução. E o que está a acontecer é que os intérpretes vão para a escola fazer o papel que deveria ser dos surdos se fossem formados para isso, isto é, se tivessem uma formação específica que lhes permitisse serem professores. Esta licenciatura vem, precisamente, ao encontro destas necessidades”, explica a professora Ana Mineiro.
Durante muito tempo, os surdos não viram a sua língua reconhecida. Um congresso em Milão, realizado nos primórdios do século XIX, viria a ser determinante na degradação da sua qualidade de vida em todo o mundo, ao proibir a linguagem gestual com a justificação de que a mesma os impedia de aprender a oralizar. Em Portugal, isso também aconteceu. Com esse propósito, chegavam mesmo a atar-lhes as mãos e a língua gestual tornou-se, assim, uma língua secreta, “falada” às escondidas. “Através de terapeutas da fala, alguns conseguiam, de facto, oralizar, mas a questão é que eram proibidos de falar uma língua que é biologicamente programada para as pessoas que têm este défice sensorial”, faz notar Ana Mineiro.
O contributo da equipa da Católica para enriquecer os estudantes surdos vai além da licenciatura. Está a ser criado um Dicionário de Português e Língua Gestual, com a colaboração dos universitários que integram o primeiro ano da licenciatura.