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Mulheres num mundo de homens

A competência não basta e para se afirmarem em profissões associadas ao universo masculino, as mulheres têm de lutar contra preconceitos e estereótipos. Carla Gonçalves, mecânica, Maria Baptista, camionista e Júlia Franco, canalizadora, contam como é trabalhar num mundo onde as mulheres são a minoria
13.10.2006


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Marisa Antunes e Maribela Freitas Carla Gonçalves é tão boa ou melhor que muitos colegas de profissão. Mas muitos daqueles que recorrem aos seus serviços ficam de pé atrás. Há oito anos no ramo, esta mecânica continua ainda hoje a ouvir comentários machistas e despropositados de quem não consegue ter uma mente suficientemente aberta para aceitar uma mulher numa profissão associada ao universo masculino.


Tal como Carla, já são muitas as mulheres que se aventuram a entrar num mundo profissional muito próprio, onde além das exigências do trabalho ainda têm de se adaptar às mentalidades inerentes a estas profissões. E apesar da discriminação, são poucas as que reclamam. A Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego, no seu último relatório de actividade, registou apenas uma queixa por discriminação em função do sexo no trabalho.

“Tenho a certeza de que se não estivesse a trabalhar com o meu pai, não conseguiria arranjar emprego noutra oficina porque as pessoas são preconceituosas. Incomoda-me um bocado certas atitudes. Principalmente os clientes mais velhos que não dispensam fazer perguntas do tipo ‘ as peças estão todas bem apertadas' e coisas do género. Ou os fornecedores que explicam, com um certo ar de gozo, como funciona determinada peça”, desabafa Carla Gonçalves, de 30 anos.

Apaixonada pela sua profissão, gosto que herdou do pai e das memórias de infância passadas na oficina, Carla tirou o curso de mecânica no Centro de Formação Profissional de Reparação Automóvel durante um ano e periodicamente faz reciclagens para se manter a par das novidades tecnológicas que vão surgindo nos novos automóveis.

O curso técnico-profissional na área administrativa que frequentou durante três anos não a motivou por aí além e a vontade de seguir a sua vocação, aliada à necessidade de manter o negócio do pai, até porque é filha única, acabou por determinar o seu futuro emprego. “Até já me convidaram para ser inspectora de automóveis mas recusei. Eu costumo dizer que gosto mesmo é de sujar as mãos, de pôr um carro a funcionar”, graceja a mecânica da Auto-Mecar, no Porto.

Para o sociólogo António Manuel Marques, a realizar um doutoramento em psicologia social, “a maioria das mulheres que ingressam nestas actividades fazem-no através da via da especialização e da formação, ou seja, estão a aceder por cima”. Porém, nestes micro-universos, a imutabilidade é a palavra de ordem. As mulheres não conseguem alterar os “maneirismos” já interiorizados, nem mesmo quando possuem mais formação do que os seus colegas masculinos.

“A identidade profissional não muda. Se é tipicamente masculina, assim vai continuar a ser, mesmo que tenha a presença de mulheres”, sublinha o investigador, que tem vindo a estudar a construção da masculinidade no mundo profissional, colocando homens e mulheres a falar sobre esse assunto. Um estudo que tem incidido na cirurgia geral, magistratura, no “off-set” e nos profissionais dos táxis.

Maria Baptista não é taxista mas camionista. Não por necessidade, mas por uma curiosa e verdadeira paixão que começou quando ainda era pequena e vivia em África. “Os meus pais tinham uma herdade em Angola, mais especificamente em Benguela, onde plantavam de tudo. Todos os filhos ajudavam muito, e eu especificamente, conduzia um tractor com atrelado que transportava os caixotes de fruta. Foi aqui que começou a minha paixão pelo pesado”, recorda Maria Baptista.

O desejo de evasão e de conduzir grandes máquinas esteve sempre consigo. Casou-se teve cinco filhos e durante décadas passou por vários empregos que a aborreciam mas que garantiam o salário no final do mês. “Trabalhei em fábricas, fui costureira de peles, depois numa loja de roupas com a minha filha, fui doméstica… Mas sentia uma terrível frustração”, conta.

Apesar da frustração, Maria nunca desistiu do seu sonho, um pouco bizarro para muitos sendo ela mulher. “Quando o último dos meus cinco filhos se tornou independente, resolvi concretizar o meu desejo. No dia em que a minha filha recebeu o seu ordenado, inscrevi-me numa escola de condução para tirar a carta de pesados e articulados. Tinha eu 50 anos”, lembra a camionista, há seis anos a trabalhar em transporte internacional e actual motorista de pesados duma empresa espanhola.

Também Júlia Franco, aos 50 anos de idade, afirma sentir-se realizada profissionalmente numa ocupação tipicamente masculina. Desde 2000 que trabalha como canalizadora em obras de construção civil, tendo começado através de um programa de voluntariado. “Foi um desafio que me colocaram. Estava ligada a uma associação de luta contra a toxicodependência através do trabalho, em que um voluntário tinha como função acompanhar as pessoas em recuperação, trabalhando com elas na mesma empresa”, explica Júlia Franco.

Aceitou o desafio e viu-se em plena obra de construção civil, a aprender a ser canalizadora, um trabalho especializado e bem pago, sublinha. “Tive um mestre com quem aprendi a profissão e com quem trabalho até hoje, já lá vão seis anos”, lembra. Antes tinha exercido funções de supervisora numa empresa e confessa que esta mudança laboral foi radical. Mais ainda quando teve de adaptar-se a um novo contexto de trabalho. “Tive de abdicar das saias e anéis que não se coadunam com a actividade que tenho”, explica a canalizadora que se manteve na profissão apesar do projecto de voluntariado já ter terminado.

Apesar de trabalhar com homens todo o dia, diz que não se sente marginalizada e que é bem aceite quer numa obra, quer em serviço em habitações particulares. “Afirmo-me na construção civil de igual para igual. As mulheres reclamam os seus direitos, mas depois não lutam por eles. No trabalho somos todos iguais e os meus colegas respeitam-me”, conta Júlia Franco.

Segundo a experiência das mulheres que entrevistou para o seu estudo, António Manuel Marques lembra que “num primeiro impacto, elas nunca falam de discriminação ou pressão. Contudo e na continuidade da conversa, de forma consciente ou inconsciente, expressam ideias que evidenciam o oposto. As mulheres em profissões tipicamente masculinas adaptam-se ao contexto, tentam masculinizar-se”. Por isso, conclui o investigador, “há um refinar da discriminação e da não integração, o que torna mais difícil lutar contra ela”.





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