Cátia Mateus e Marisa Antunes
Salvam vidas mas trabalham quase sempre no limite. Não lhes é permitido o erro, mas não lhe dão as condições necessárias para assegurar o melhor tratamento possível ao doente. Neste momento não ultrapassam os 5000 mas deveriam ser pelo menos 7000. Os enfermeiros perioperatórios, que ontem celebraram o seu Dia Europeu, actuam essencialmente no bloco cirúrgico e são fundamentais para o sucesso das intervenções médicas. Mas apesar da importância primordial das suas funções, estes profissionais estão ainda bem longe das condições de trabalho que consideram ideais para salvaguardar a vida dos doentes. Há 20 anos que a classe luta pela criação e reconhecimento da especialidade de perioperatório nos cursos de enfermagem. Uma batalha que parece estar ainda longe de ser ganha.
Em dia de comemorações, os enfermeiros perioperatórios, que representam 10% do total de 50 mil enfermeiros existentes em Portugal, aproveitaram para chamar a atenção para uma situação que se vai tornando insustentável e que nem os constantes alertas emitidos pela Associação dos Enfermeiros de Sala de Operações Portugueses (AESOP) tem ajudado a resolver.
Na grande maioria dos hospitais portugueses, os blocos operatórios funcionam com apenas dois enfermeiros quando o recomendado pelos organismos de saúde de todo o mundo é um número nunca inferior a três: um enfermeiro-anestesista (que acompanha o processo anestésico do doente), um instrumentista (que presta assistência ao médico durante a cirurgia ao nível de instrumentos) e um enfermeiro circulante (que dá apoio aos outros dois elementos da equipa de enfermagem, assegurando ainda a gestão do controlo de infecção em sala). “Três enfermeiros perioperatórios é o ideal para que tudo corra com a maior das seguranças. Um circula, outro instrumenta e outro apoia a anestesia. Nenhum é mais importante que os outros. O grau de responsabilidade é exactamente o mesmo e todos estão lá para garantir a segurança do doente. Porém, a maior parte das vezes estão apenas dois enfermeiros por sala”, sublinha Maria José Dias Pinheiro, que presidiu durante 16 anos a AESOP e que actualmente desempenha funções de consultoria nesta associação.
Para Mercedes Bilbao, que pertence também à direcção da AESOP, um dos grandes problemas reside no congelamento das vagas nas instituições de saúde que não colmata as faltas sentidas, nem mesmo quando estas se agravam sempre que se reformam mais alguns enfermeiros, o que cria situações incomportáveis. “O Estado não abre concurso para novas vagas e há sobrecarga para os enfermeiros que estão em serviço. O poder político não pode estar sempre a depender da boa vontade e do esforço dos profissionais para se conseguir dar ao cidadão português um tratamento condigno. E no bloco operatório isso acontece muito. As pessoas têm que dar o seu melhor apesar dos condicionalismos a que estão sujeitas. E dão. Eu acho que as pessoas que trabalham no bloco operatório são heróis. Trabalham sob stresse e dão sempre 100% em situações onde não se admite o risco nem o erro”, aponta ainda Mercedes Bilbao.
Para evitar esta sobrecarga seriam necessários 7000 enfermeiros perioperatórios. Um número longe dos 5000 que hoje existem. “Isto só nos hospitais públicos e sem falar nos privados que raramente têm «staff» próprio. Normalmente, são os enfermeiros dos hospitais públicos que asseguram, em duplo emprego, as cirurgias nos privados”, explica Maria José Dias Pinheiro. Uma situação que considera preocupante, tanto mais que estes profissionais já levam, no mínimo, sete horas de trabalho. “Por lei, o horário dos enfermeiros é de 35 horas semanais. Os que fazem duplo emprego, cumprem cerca de 16 horas diárias de trabalho”, clarifica ainda.
Mesmo nos hospitais públicos, a sobrecarga horária é uma realidade. Há instituições que praticam um regime de escalas de prevenção, a exercer como continuidade do horário de trabalho. “Os enfermeiros que estão de prevenção trabalham sete horas diárias e ainda asseguram as urgências em regime de chamada. Entram de prevenção à hora em que termina a última cirurgia programada (21h) e ficam até às oito da manhã do dia seguinte”, explica Mercedes Bilbao argumentando que esta escassez de recursos “exige às pessoas uma capacidade de resistência ao esforço e ao cansaço”. A enfermeira não tem dúvidas de que “as pessoas não estão nas suas capacidades normais depois de funcionarem 12 ou 24 horas de trabalho. Mas tentamos que estejam minimamente em condições de segurança para garantir o movimento operatório de doentes”.
Outra lacuna grave, além da falta crónica de pessoal, assenta da inexistência de uma especialização nesta área, que fosse reconhecida oficialmente pela Ordem dos Enfermeiros e pelas autoridades governamentais. Uma exigência reclamada pela AESOP que acaba por se desdobrar em acções de formação para preparar da melhor forma os enfermeiros perioperatórios. “O doente precisa de cuidados especializados, por isso nós, os enfermeiros, consideramos que o nosso doente necessita de competências especiais que não adquirimos na formação de base. Essas competências permitem-nos trabalhar na função perioperatória. Ou seja, acompanhar no pré, no intra e no pós-operatório (até ao recobro). Para este tipo de actividades necessitamos de competências específicas que na formação-base são zero”, sublinha Mercedes Bilbao.
Na Europa e além de Portugal, apenas a Itália, Espanha e Hungria não reconhecem essa especificidade. Mas “o enfermeiro precisa dessa formação e se não é reconhecida academicamente e de forma oficial, tem de ser dada à conta do próprio serviço”. Uma dificuldade de recursos adicional, porque “em rigor aquele enfermeiro não deveria contar durante no mínimo seis meses, para dar tempo de o integrar no serviço”, refere a mesma responsável que adianta ainda que “esse período varia conforme as especialidades. Um enfermeiro para cirurgia cardíaca precisa de pelo menos dois anos de preparação”. Uma teoria corroborada por Maria José Dias Pinheiro, que lembra que “a especialização implicaria uma formação adicional de 1800 horas”.
Há 20 anos que a AESOP batalha pelo reconhecimento desta especialidade, ainda sem resultados visíveis. Apesar disso, a bastonária da Ordem dos Enfermeiros, Maria Augusta de Sousa, frisou que a questão está neste momento a ser analisada. “O conselho de enfermagem da Ordem está a estudar um novo modelo de desenvolvimento profissional através da certificação de competências de especialidades em enfermagem”, justifica salientando contudo que “não se pode adiantar já se estes profissionais vão ver as suas competências reconhecidas ou não. Esse reconhecimento poderá eventualmente ocorrer”. Para já, Augusta de Sousa prepara os enfermeiros para uma espera de mais dois anos que é o tempo estimado para a conclusão deste processo de reavaliação do modelo actualmente em vigor.