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O ‘amor à camisola’ tem os dias contados

Gestão - Há um novo movimento a emergir entre os trabalhadores. Chamam-lhe ‘demissão silenciosa’, deixar de viver em função do trabalho para fazer “só o necessário”. Estarão as empresas preparadas?

09.09.2022 | Por Cátia Mateus


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Há vida além do trabalho e são cada vez mais os profissionais que recusam ceder aos excessos da vida profissional. A pandemia deixou ao mercado de trabalho vários legados. Um deles foi a ideia de que é possível trabalhar de outra forma, rompendo com a prática das longas jornadas de 10 a 12 horas de trabalho no escritório. Nos últimos meses uma nova tendência tem vindo a ganhar dimensão no mercado. Os especialistas chamam- lhe demissão silenciosa — quiet quitting, na designação original — e a tendência tornou-se viral através da rede social TikTok.

Não se trata de uma demissão no sentido formal do termo. Os trabalhadores não se recusam a trabalhar nem são negligentes na execução das tarefas, simplesmente impõem limites. Não fazem horas extra, não vão além das funções para as quais foram contratados, não trabalham mais por “amor à camisola”. Cumprem a função para a qual foram contratados, no horário estipulado. Vanda Brito, diretora de recursos humanos da consultora Kelly Portugal, defende que esta mudança de mentalidade, cimentada durante a pandemia, marca uma rutura com a forma como nos relacionamos com o trabalho e o seu papel nas nossas vidas. “É um caminho sem retorno, este de mostrar que a nossa carreira não nos define como pessoas e não é o centro da nossa existência”, que está a ser alavancado sobretudo pelas novas gerações de profissionais, mas “certamente que terá um efeito de contágio às anteriores”.

Mas, para Vanda Brito, a grande questão é: “As organizações estarão preparadas para atingir objetivos quando uma parte da sua força de trabalho admite que só fará o mínimo e estritamente necessário?” E a resposta é clara: “Não. As empresas terão, forçosamente, de acompanhar esta mudança de paradigma no que diz respeito à forma como os profissionais se relacionam com o trabalho.”

A forma como esse caminho é percorrido, diz, será crítica para a capacidade de contratação, retenção e competitividade das empresas. “O que os trabalhadores nos estão a dizer, sobretudo os mais jovens, é que gostam de trabalhar, querem trabalhar, mas não é o trabalho que os define ou que domina a sua vida”, explica, enfatizando que “esta postura marca uma rutura com as gerações anteriores, muito focadas na carreira, na necessidade de reconhecimento, na progressão e no sucesso”.

Anthony Klotz, professor da Faculdade de Gestão da Universidade de Londres, que sinalizou também a tendência recente da vaga de demissões — conhecida como great resignation —, que se iniciou quando as empresas começaram a chamar os profissionais de volta ao escritório, depois de quase dois anos em teletrabalho, sinalizou recentemente numa entrevista à BBC que o menor compromisso dos trabalhadores com o empregador tem vindo a ser estudado.

Maus chefes ou maus profissionais?

São várias as razões que podem levar um trabalhador a aderir ao movimento da demissão silenciosa, e muitos profissionais podem até ter mesmo como objetivo o despedimento. Klotz sinaliza como exemplos a insatisfação profissional, falta de reconhecimento das chefias, objetivos de progressão frustrados, salário ou condições de trabalho pouco aliciantes, desmotivação ou ansiedade constante com a rotina laboral.

Na verdade, uma pesquisa recente da consultora Zenger/Folkman, publicada na “Harvard Business Review”, sinaliza que o movimento da demissão silenciosa tem mais a ver com maus chefes do que com maus trabalhadores que não estão dispostos a “dar o litro”. A consultora, especializada no desenvolvimento de lideranças, reuniu dados de 2801 gestores que foram avaliados por 13.048 subordinados.

Focando-se no papel dos líderes e partindo da questão que diferencia aqueles que encaram o trabalho como uma prisão dos que sentem que o trabalho lhes dá um propósito, a consultora concluiu que os gestores avaliados como menos eficazes têm três a quatro vezes mais subordinados que se enquadram na chamada “desistência silenciosa”, por comparação aos líderes mais eficazes.

Argumentos que reforçam a convicção de Vanda Brito de que “esta é uma oportunidade única para repensar a cultura das empresas e os modelos de liderança”. Um bom líder, diz, “faz com que os colaboradores queiram estar na empresa e se empenhem nos objetivos”. Mas para isso “é preciso criar um ambiente justo e de reconhecimento”.

E o tema até é urgente. A braços com uma crise económica, com a inflação a disparar e dificuldades de contratação, as empregas precisam da sua força de trabalho em “compromisso máximo” para não falhar objetivos e garantir a sustentabilidade. Assim, sinaliza Vanda Brito, “este movimento da demissão silenciosa pode trazer problemas adicionais às organizações”.

 

REDESENHAR A CULTURA DAS EMPRESAS

Dignificação do trabalho
Uma das bases para cimentar o compromisso dos trabalhadores com a empresa é garantir-lhes previsibilidade na carreira e estabilidade. Um precário não vai trabalhar motivado.

Salários adequados
Salários justos para a exigência da função e benefícios adequados às necessidades dos trabalhadores são ferramentas para combater a tendência das demissões silenciosas.

Flexibilidade
Ninguém quer voltar a trabalhar como antes da pandemia e as empresas têm de se adaptar ao novo contexto para garantirem o compromisso dos seus trabalhadores.

Reconhecimento
Reconhecer o mérito e gerir as expectativas são determinantes para garantir a retenção e a motivação.

Reforço da comunicação
É fundamental manter hierarquias planas e comunicação clara em toda a empresa.



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