Maria Cândida Rocha e Silva, presidente do Conselho de Administração do Banco Carregosa, faz parte do que se pode classificar de uma “minoria de elite”, a das mulheres portuguesas em cargos de topo. Tinha 36 anos quando se tornou corretora oficial e assumiu o primeiro cargo de liderança da sua carreira, totalmente dedicada a um sector que durante décadas foi conotado como tipicamente masculino, o financeiro. A gestora, licenciada em Filologia Românica, considera-se “bem tratada pela vida”. Nunca se sentiu profissionalmente limitada por questões de género e embora garanta que no ambiente em que trabalha “homens e mulheres têm os mesmos direitos, podem assumir as mesmas responsabilidades e têm salários iguais para funções iguais”, reconhece que em Portugal o mérito ainda é muito masculino e que, em matéria de carreira, as questões de género se sobrepõe muitas vezes às da competência. Quanto mais se caminha para o topo, maior é a desigualdade na representação dos géneros. Os números comprovam-no e quem está no terreno ainda sente as diferenças, apesar de nas últimas décadas muitas portuguesas terem conseguido conquistar posições de destaque como líderes e empreendedoras.
Na próxima semana, a 19 de novembro, o mundo assiná-la o Dia Global do Empreendedorismo Feminino. A data poderia ser oca de sentido ou até desnecessária se a igualdade fosse, a nível global, uma realidade nas empresas e no mercado de trabalho. Sara Falcão Casaca, docente do Instituto Superior de Economia e Gestão e investigadora na área da igualdade de géneros, faz regularmente as contas às oportunidades de homens e mulheres no domínio da liderança e da progressão profissional e embora reconheça que as últimas décadas trouxeram progressos nestas matérias, explica porque razão dias como estes continuam a ser necessários Portugal. “A forma como o mérito é determinado, avaliado e recompensado não é neutra do ponto de vista do género”, explica a investigadora acrescentando que mesmo em matéria de empreendedorismo, a criação de um auto-emprego apresenta-se muitas vezes para as mulheres como uma opção face à necessidade de alcançar um maior equilíbrio entre a vida profissional e profissional que é, não raras vezes, dificultado no contexto das organizações e do emprego por conta de outrem (ver caixa).
??Onde se acentuam as diferenças??Há sectores onde estas diferenças se acentuam? Para a investigadora, sim. As desigualdades são, sobretudo, acentuadas nas áreas de tomada de decisão, como nas esferas económica e financeira, por exemplo. “A segregação sexual horizontal é uma das características da estrutura da atividade económica. Pensemos nos transportes, na construção, nas tecnologias de informação, áreas essencialmente masculinas, e também na área da educação, saúde ou apoio social, onde as mulheres são a larga maioria da força de trabalho”, explica. Mas há exceções e em funções de liderança. ?Recentemente, a Informa D&B tornou públicas as conclusões de um estudo sobre a presença feminina nas organizações portuguesas que dava conta de que apenas 27,4% dos cargos de liderança nas organizações, contra 71,8% das chefias masculinas, e só em 6,2% dos casos é feminina a gestão de topo. A presença feminina nas organizações aumentou 4,1%, mas mantém-se a sua sub-representação em cargos de topo.
Sofia Tenreiro e Sara do Ó juntam-se a Maria Cândida Rocha e Silva e contrariam a estatística. A primeira lidera, aos 40 anos, os destinos da multinacional Cisco em Portugal e dá cargas num sector que muito apontam ainda como masculino: o das tecnologias de informação (TI). A segunda trocou, em 2005, a segurança de um emprego numa consultora financeira pela ambição de criar um negócio próprio, num sector onde os homens também dominaram durante décadas, a contabilidade e finanças. ?A diretora geral da Cisco Portugal tinha apenas 32 anos quando, pela primeira vez alcançou, uma posição de liderança. Foi como diretora executiva do canal de retalho do gigante tecnológico Microsoft em Portugal. Do seu currículo fazem parte múltiplos desafios em contexto nacional e internacional. Os suficientes para assumir sem receios que, em matéria de igualdade, “a realidade em Portugal é de grande mudança, com cada vez mais exemplos de meritocracia no feminino”.
Sofia Tenreiro garante que nunca deixou de ter uma oportunidade por ser mulher, quer nas multinacionais por onde passou, quer nas empresas nacionais. Mas reconhece que o deve “não apenas à cultura dessas empresas, como também à abertura das minhas chefias, que olhavam para a diversidade como fator de diferenciação e enriquecimento das suas equipas”. Contudo, reconhece que embora se somem cada vez mais os exemplos de sucesso de mulheres em múltiplas áreas e sectores, alguns estigmas persistem no contexto nacional que impedem a progressão profissional e afastam as mulheres das posições de liderança. “Há um legado de muitos anos onde, não só as mulheres achavam que tinham de abdicar da sua vida familiar para ter uma carreira de sucesso, como havia muitas chefias que não davam as mesmas oportunidades às mulheres”. ?Hoje, garante, há uma mudança radical. O sector tecnológico é disso um exemplo. Até há bem pouco tempo era considerado uma área tipicamente masculina e tem hoje cada vez mais mulheres em destaque. Na Cisco, por exemplo, “55% dos profissionais são mulheres”, frisa. Mas na altura de apurar responsabilidades no que toca à limitação de acesso das mulheres a funções de topo, Sofia Tenreiro não aponta o dedo apenas às empresas e adianta: “nas situações em que essa limitação existe, são as próprias mulheres que mais se auto-limitam, quer porque não acreditam que têm todas as competências necessárias, quer porque têm receio de ter de abdicar da sua vida familiar para terem sucesso na profissional”.?
Sara do Ó, CEO do Grupo Your, uma empresa fundada e liderada por mulheres e centrada na prestação de serviços de apoio às empresas, partilha desta visão até porque o mundo do empreendedorismo não é muito diferente do emprego por conta de outrem, quando a batalha é por demonstrar a competência e o mérito feminino. A gestora iniciou a carreira na consultora KPMG de onde saiu para fundar, em 2005, a Your. “Na altura tínhamos várias condicionantes: éramos jovens, mulheres e falávamos de números. Éramos uma empresa assumidamente feminina a tentar triunfar num universo masculino, como o financeiro. Foi um desafio”, explica reconhecendo que a determinação e a crença nas capacidades e competência, de que também fala Sofia Tenreiro, foi o principal trunfo da equipa para vencer no mercado e iniciar a expansão.
Em cinco anos, o grupo que lidera fundiu-se com um dos gigante da área e passou a prestar serviços em 10 áreas distintas. “Entrámos no mercado com dois clientes e uma faturação anual de €50 mil e temos hoje mais de mil clientes e uma faturação de quatro milhões de euros anuais. Pelo caminho tivemos de provar muito mais do que uma 'empresa masculina' na mesma área, ouvimos muitas vezes opiniões derrotistas e acusadoras de que estaríamos a negligenciar a família. Tivemos de treinar muito a nossa resistência à crítica”, reconhece Sara, mãe de uma filha e dois enteados. Para a gestora, há limitações ainda por se ser mulher, mas “o reconhecimento é independente do género, se houver trabalho e dedicação”, garante.
"A meritocracia é um conceito idílico, um mito"
Sara Falcão Casaca é docente e investigadora do ISEG, na área da igualdade de géneros. Ao longo dos últimos anos tem estudado a progressão das mulheres na liderança e no mercado profissional.
Em Portugal o mérito ainda é masculino? As questões de género são superiores ao mérito em matéria de carreira??
A forma como o mérito é determinado, avaliado e recompensado não é neutra do ponto de vista do mérito. A meritocracia é um conceito idílico, um mito, uma vez que nem todas as pessoas têm a mesma oportunidade de desenvolver e revelar o seu mérito. E como sabemos, as desigualdades de género persistem, resistem, inviabilizando muitas mulheres de grande mérito.
Quais são os principais desafios e barreiras que as mulheres portuguesas ainda enfrentam em termos profissionais?
Desde logo, do ponto de vista laboral, é hoje muito elevado o número de mulheres que não têm a segurança e a estabilidade necessárias para viver em condições de dignidade e para conduzir autonomamente, em liberdade, as suas vidas. Encontramo-las sobrepresentadas nas formas de sub-emprego, nos vínculos temporários, no trabalho a tempo parcial involuntário, nas situações de desemprego e no desemprego de longa duração. Uma das maiores conquistas do pós 25 de Abril foi o aumento da escolaridade entre as mulheres, que, efetivamente, têm hoje níveis de e habilitação escolar superiores aos dos homens, mas ganham em média menos 17,9% do que os trabalhadores do sexo masculino (remunerações de base), e menos 20,8% quando observamos os ganhos em geral. ?
Em que áreas é esta desigualdade mais acentuada??
Na tomada de decisão da esfera económica e financeira, por exemplo.
Esta limitações são extensíveis às liderança empresarial...
No domínio da liderança da vida empresarial, em particular, a sub-representação feminina nos lugares de topo das empresas coloca Portugal numa das posições mais retrógradas de todo o espaço europeu e internacional. Mais ainda no que diz respeito à esfera profissional, há a referir que as mulheres são, ainda, frequentemente penalizadas pela maternidade (ou pela antecipação dessa condição), por prevalecerem práticas de gestão e de organização do trabalho tradicionais, pouco atentas à igualdade de género e pouco “family-friendly”.