Os nomes são fictícios, mas o cenário é real e legal, de acordo com a tabela salarial do sector do calçado: Em 2015. Ana, operadora de costura de primeira ganhava €522, menos €22 do que João, operador de montagem de segunda, e menos €32 do que Manuel, operador de montagem de primeira na mesma fábrica de sapatos. No ano passado, a diferença diminuiu e Ana passou a ganhar €546, tal como João, mas ainda €13 abaixo de Manuel.
Mas porque é que uma costureira de primeira ganha o mesmo que um operador de montagem de segunda? Basicamente porque na primeira categoria profissional, as mulheres são a maioria e na segunda dominam os homens. Na verdade, a montagem pode ser “um trabalho um pouco mais duro”, mas “a costura exige especialização”, admite um empresário de Felgueiras, o concelho que mais contribui para as exportações portuguesas de calçado.
No papel, nada diz que os homens ganham mais do que as mulheres, mas a tabela em vigor refletia, até agora, a diferença de sexo desta forma indireta. É este quadro que muda já a partir de abril, depois da assinatura do novo contrato coletivo do sector entre a APICCAPS, a associação dos industriais do calçado, e a FESETE — Federação dos Sindicatos dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios, Vestuário, Calçado e Peles de Portugal. Ana, passa, agora, a ganhar €561, tal como Manuel, €4 acima do salário mínimo nacional.
O “acordo histórico” impõe, pela primeira vez, igualdade remuneratória para trabalhadores que desempenham funções do mesmo nível de classificação, independentemente do género, sublinha a APICCAPS, enquanto o ministro do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Vieira da Silva, presente na cerimónia de assinatura, destaca o facto de ser a primeira vez que um sector consagra a igualdade de género num contrato coletivo.
Apesar de saber que esta é apenas “uma etapa” num caminho que tem, ainda, muitos desafios pela frente, Vieira da Silva não poupou elogios a um sector que tem nas mulheres 60% da sua força laboral. “Habituámo-nos a ouvir falar dos industriais do calçado por boas razões nos últimos anos” e “talvez não seja por acaso que é o calçado a fazer isto”, comentou o ministro antes de apresentar a fileira como “farol de inovação” e elogiar “o enorme esforço de empresários e trabalhadores para porem esta indústria entre as mais importantes do mundo”.
Para isso, explica Manuel Freitas, da FESETE, foi preciso “um estudo rigoroso das funções e categorias do sector” e “três anos de negociações difíceis”. O resultado obtido pode ser “uma boa prática a seguir por outros” e permite “repor a justiça e dignidade em dezenas de milhares de mulheres que trabalharam duramente para o sucesso dos sapatos portugueses ser de nível mundial”.
Na negociação da tabela que entra agora em vigor, admite que a FESETE privilegiou o fim da discriminação do género. Foi esse desígnio de garantir salário igual para trabalho igual que levou a estrutura sindical a aceitar um aumento médio de 3,45%, que significa subidas de salários de 5,3% para as categorias predominantemente femininas, percentagens mais baixas noutras categorias e aumentos de 0% para os quadros intermédios e superiores.
No entanto, este é um princípio que vale, apenas, para os salários mais baixos do sector. Acima da tabela, cada empresário paga os salários que entende e, de acordo com o critério de diferenciar ordenados em função do trabalho de cada um e não do sexo, uma mulher pode ganhar mais do que um homem, mas também há empresários que reconheceram ao Expresso pagar €650 a uma mulher e €700 a um homem com funções equiparadas.