O gigante do transporte individual de passageiros Uber está a testar o lançamento de um novo serviço: uma plataforma de recrutamento de trabalhadores temporários, a Uber Works. O projeto está envolto em mistério e poucos são os pormenores conhecidos. Sabe-se apenas que faz parte da estratégia de diversificação de atividade da Uber — depois da Uber Eats e da Uber Freight, que liga camionistas independentes a empresas e particulares — que prepara a entrada em bolsa no início do próximo ano, depois de ter sido avaliada em 120 mil milhões de dólares (103 mil milhões de euros). O objetivo da empresa, que foi uma das precursoras da designada platform economy (economia das plataformas), é passar a oferecer um serviço de recrutamento à hora. Mas em alguns países, como Portugal, onde a atividade de trabalho temporário está devidamente regulamentada, dependendo do modelo de negócio que venha a adotar, a entrada da Uber Works pode encontrar entraves legais.
O modelo está a ser desenvolvido em Chicago e foi testado, no início do ano, em Los Angeles. Tudo o que se sabe é que envolve nesta fase perfis profissionais menos qualificados, como empregados de mesa, serviços de limpeza e manutenção e de segurança privada. Fica no ar se na mira da Uber estarão também funções temporárias mais qualificadas e especializadas, na área das tecnologias de informação, design, marketing, saúde ou outras, que registam também grande procura no mercado. Apesar das várias tentativas realizadas pelo Expresso, a Uber recusou-se a comentar qualquer questão relacionada com o projeto Uber Works.
O economista Andrey Liscovich foi nomeado em julho diretor da nova unidade de negócio focada no recrutamento, reportando diretamente a Rachel Holt, vice-presidente da Uber com tutela para área de New Mobility (nova mobilidade), o que poderá indicar que a entrada da operação no mercado americano poderá estar para breve. De resto, a empresa tem vindo a acelerar os processos de recrutamento para a Uber Works. Online estão disponíveis vários anúncios para integrar a “equipa de projetos especiais em Chicago” que traçam claramente o perfil profissional que empresa ambiciona: “forte interesse pelo campo de trabalho on-demand” e “predisposição para trabalhar nos períodos mais movimentados para o produto (muitas vezes à noite, em finais de semana e feriados)”. O retrato de uma economia da flexibilidade que nos últimos anos tem vindo a ganhar escala no mundo inteiro.
Na mira da Uber
A realidade portuguesa em matéria de flexibilidade, trabalho temporário e adesão à economia das plataformas colocará certamente o país na rota da Uber Works, muito embora o Expresso saiba que a empresa não tem ainda uma data para internacionalizar a app de recrutamento. Portugal é o terceiro país da União Europeia (depois da Polónia e de Espanha) com maior percentagem de trabalho temporário. No final do ano passado, os dados da Eurostat apontavam para um total de 21,5% de empregos temporários no país. Mais 0,9 pontos percentuais do que os apurados pelo organismo europeu de estatística em 2002. O número de trabalhadores independentes registados a nível nacional também não é de desprezar: quase 800 mil, segundo o Instituto Nacional de Estatística. E o país é também o terceiro, entre 14 Estados europeus, onde o emprego gerado direta ou indiretamente pela economia das plataformas é mais expressivo, segundo um estudo divulgado pela Comissão Europeia (ver texto ao lado).
Mas a entrada da Uber Works em Portugal pode não ser simples. Tudo depende do modelo de negócio que a empresa venha a adotar. E à partida, um dos serviços que oferece — o de segurança privada — encontra já sérias limitações em território nacional, onde esta é uma atividade regulamentada e que exige licenças específicas, tal como o trabalho temporário (TT). No ano passado, a União Europeia definiu que a Uber é uma empresa que presta serviços de transporte e que deveria ser regulada como tal, abrindo caminho à aplicação de regras similares às dos tradicionais serviços de táxi. E isto não é um pormenor. Se a empresa tivesse sido simplesmente enquadrada como uma plataforma digital, teria conseguido escapar a regulações sectoriais mais restritas. No que à Uber Works diz respeito, a questão que agora se impõe é apenas uma: pode uma empresa que está legalmente enquadrada como firma de transportes exercer atividade de trabalho temporário? “Não, não pode”, afirma o advogado Tiago Piló, especialista em Direito do Trabalho da sociedade Vieira de Almeida (VdA).
Novo negócio, o mesmo modelo
Com a ressalva de não ser conhecido em pormenor o modelo de negócio com que a Uber Works vai entrar no mercado, o especialista diz ter sérias dúvidas de que seja diferente do que atualmente enquadra a atividade da empresa. O esquema de parceiros-recrutadores (empresas que se associam à Uber e que estabelecem relações contratuais formais com os profissionais que depois integram a plataforma) transforma a Uber num gigante da economia quase sem funcionários próprios.
Este é para Tiago Piló o modelo mais provável para a entrada da empresa em Portugal. “O trabalho temporário é uma atividade muito regulamentada a nível nacional que pressupõe um vínculo contratual entre o prestador de serviços e a empresa de TT e tenho sérias dúvidas de que a Uber vá estabelecer estes vínculos”, explica acrescentando que para contornar as imposições legais, a Uber terá de agregar uma rede de parceiros que cumpram estes requisitos. O mesmo acontece para a segurança privada, “terão de ser empresas licenciadas a disponibilizar os profissionais, a plataforma é que pode ser a Uber”.
Tiago Piló admite que a economia das plataformas pode ser aplicada a quase todos os sectores, da advocacia à saúde. Mas acrescenta que como noutras atividades inovadoras e disruptivas face às práticas do mercado e, por isso, não estão regulamentadas “dependendo do sucesso do modelo, este pode vir a ser um dos casos em que a realidade do mercado força a regulação específica”. É o que esperam Afonso Carvalho, presidente da Associação Portuguesa das Empresas do Sector Privado de Emprego (APESPE) e administrador do grupo Egor, e José Miguel Leonardo, diretor-geral da empresa de trabalho temporário Randstad em Portugal, que defende que “o aparecimento de novos modelos de concorrência são expectáveis e desde que apresentem as mesmas garantias para o trabalhador serão sempre benéficos para o desenvolvimento do mercado”.
Mais reticente, Afonso Carvalho admite que “comparar a Uber Works a uma empresa de trabalho temporário poderá ser, por si só, um risco”. Para o presidente da APESPE, “tal como estamos a assistir na longa disputa entre táxis e Uber, o conceito é novo, não se pode enquadrar na legislação vigente e o pior que pode existir é um vazio legal (para a Uber Works, para os trabalhadores e para os clientes finais)”.
O modelo de negócio Uber
O modelo de negócio global da Uber transforma-a num gigante da economia que quase não tem funcionários próprios. A plataforma estrutura a sua atividade em torno de três pilares: os parceiros, os motoristas e os utilizadores. Não tem qualquer relação contratual com os motoristas, mas define tarifas, impede a negociação direta com os passageiros e pode bloquear o acesso à aplicação.
Parceiros
Ser parceiro da Uber implica estar registado como pessoa coletiva, ter licença de operador de transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma eletrónica e cumprir com os seguros necessários à atividade. São os parceiros quem estabelece a relação contratual com os motoristas, mesmo que em regime de prestação de serviços. Recolhem 40% do valor de cada serviço.
Motoristas
Trabalhar como motorista implica constituir uma empresa, tornando-se parceiro da plataforma e podendo contratar outros motoristas, ou trabalhar para um dos parceiros. Em Portugal são mais de 3000 os motoristas. A maioria são prestadores de serviços, sem direito a subsídios de férias e de Natal e o seu rendimento varia em função do número de horas trabalhadas. Segundo o que o Expresso apurou junto dos profissionais, só recebem 30% do que faturam em cada serviço ou 35%, se forem assíduos.
Utilizadores
Estão inscritos na plataforma e utilizam a aplicação para aceder a serviços de transporte. A Uber fica com 25% do valor de cada serviço requerido.
Economia das plataformas já chega a 15,6% no país
Cerca de 10% da população adulta europeia utilizam plataformas colaborativas para prestar serviços profissionais. Em Portugal, a média é superior: 15,6%. Contudo, para quase 40% destes portugueses esta forma de trabalhar não representa mais do que 25% do seu rendimento total. Os números constam de um relatório da Comissão Europeia, divulgado em junho deste ano, e colocam Portugal entre o grupo de países europeus onde a economia das plataformas tem maior expressão em termos laborais.
As estimativas da Comissão Europeia (CE) são o reflexo do crescimento exponencial que as plataformas de trabalho registaram nos últimos anos, mas pode pecar por defeito. É que a delimitação do conceito de trabalhador nestas plataformas digitais é um tema controverso na generalidade dos países. Seja porque para muitos profissionais esta não é a única forma de rendimento, e por isso não são contabilizados nestas estatística mas sim como trabalhadores tradicionais, seja porque trabalhando em exclusivo nestas plataformas se assumem como empresários e não como trabalhadores por conta própria. Calcular, em cada país, o número de trabalhadores da economia das plataformas é, por isso, um exercício complexo.
Uma das características da economia das plataformas é a sua vocação global — a possibilidade que estas conferem a um trabalhador de prestar serviços para qualquer parte do mundo. Isso pode ajudar a justificar os 15,6% de portugueses que a CE identifica como trabalhadores da economia das plataformas. No país não se conhecem muitas plataformas nacionais do género. A MyNurse, criada em 2016 pela jurista Marta Vieira, que se inspirou no modelo de negócio da Uber para criar uma plataforma colaborativa que disponibiliza serviços de enfermagem ao domicílio, é um caso de sucesso.
São os gigantes internacionais (como Uber, Cabify ou Taxify) que agregam a maior fatia dos profissionais portugueses. Mas há outros: a americana UpWork, a britânica Deliveroo, a espanhola Glovo, a Freelancer.com, com sede na Austrália, ou a recente Busco Extra, criada pelo espanhol Alejandro Valero, cujo modelo de negócio atraiu a atenção da Google e é apontado pelo “Financial Times” como um potencial concorrente da Uber Works, ainda em fase de testes. Este carácter global da economia das plataformas levanta preocupações crescentes.
“A Europa já debate se a regulação desta atividade deve ser nacional ou supranacional”, explica o advogado Tiago Piló, associado coordenador da Vieira de Almeida. Para o especialista em Direito Laboral, “estas plataformas levantam muitas questões, desde as salariais às sociais que divergem entre os vários países. Ora, se um trabalhador pode desenvolver atividade para qualquer país, independentemente da sua localização, num mercado integrado como o da União Europeia, é preciso acautelar que a prestação dos serviços não é redirecionada pelas plataformas para países com salários mais baixos, de modo a aumentar a sua margem de lucro”.