António Dornelas*
SOU dos que pensam que os sistemas de regulação dos mercados
de trabalho e de emprego são produtos históricos que individualizam
cada sociedade e, se condicionam a intervenção política,
também a tornam mais importante.
Por isso, creio que se justifica que partamos da caracterização
das modificações que ocorreram em Portugal para definirmos
a situação actual do emprego e do trabalho e as possibilidades
e os modelos de intervenção política.
Por economia de tempo, abordarei apenas os dois últimos ciclos
políticos. O primeiro ciclo - que se pode designar de "cavaquismo",
por referência ao nome do primeiro-ministro da época - corresponde,
neste domínio, à transformação da concertação
social num fórum de negociação, de que resultou a
generalização da regra da moderação salarial
- o que permitiu pôr em fase com a dos nossos parceiros comunitários
a negociação salarial - e, depois da greve geral de 1988,
uma vaga de flexibilização legislativa, que nos colocou
numa posição intermédia na UE quanto à rigidez
da legislação laboral.
O segundo ciclo político - que, por critérios idênticos,
se pode designar de "guterrismo", e no qual tive responsabilidades
pessoais - corresponde à fase final da preparação
para a UEM. Nele avultam o relançamento da concertação
social e, em consequência disso, um conjunto de alterações
muito relevantes, de que sobressaem: a "Lei das 40 horas, da flexibilidade
e da polivalência" e a aposta na reorganização
global das relações laborais consubstanciada no Acordo de
Concertação Estratégica, de que resultou um conjunto
relevante de alterações legislativas; a reformulação
das políticas de emprego e de formação profissional,
consubstanciada no Plano Nacional de Emprego; o lançamento das
políticas de combate à pobreza extrema, a diferenciação
positiva das prestações sociais e a resolução
dos problemas suscitados pela necessidade de garantir a sustentabilidade
financeira da segurança social.
É, ainda, indispensável referir a reformulação
da concertação social, traduzida em três acordos unânimes,
cada um deles sobre um tema específico: política de emprego,
mercado de trabalho, educação e formação;
saúde, higiene e segurança no trabalho e combate à
sinistralidade; fórmula de calculo das pensões e as condições
dum eventual plafonamento.
Em resultado destas transformações, o que se pode dizer
do emprego e do trabalho em Portugal, situando o nosso país no
contexto europeu? Em primeiro lugar, que em Portugal se trabalha muito,
desde muito cedo e até uma fase muito avançada da vida,
com horários longos, que temos taxas "nórdicas"
de emprego feminino, sendo que, ao contrário do que prevalece no
norte da Europa, as mulheres portuguesas trabalham, maioritariamente,
a tempo inteiro e que temos muito baixas taxas de desemprego, quer de
curta, quer de longa duração.
Depois, que o nosso país ilustra bem o dilema (Van Parijs) que
opõe a promoção da inclusão social pelas políticas
de emprego - que preferem criar empregos, mesmo que de má qualidade,
a deixar alastrar o desemprego - às políticas de limitação
da exploração, que optam por reduzir as situações
de emprego precário, visto que estas tendem a facilitar a exploração
económica dos trabalhadores.
Em terceiro lugar, que Portugal é um país de muito baixos
salários e aquele em que o nível de dispersão salarial
atinge o valor máximo, situando-se entre o do Reino Unido e o dos
EUA.
Por último, a produtividade e a regulação do mercado
de trabalho: temos taxas de participação no mercado de trabalho
e de mobilidade profissional e geográfica superiores à média
comunitária, estamos abaixo dela no que respeita ao acesso à
formação e à flexibilidade do tempo de trabalho e
temos a legislação mais rígida de protecção
do emprego, parâmetro que, no meu entender, uma decisão política
socialmente sensível deve considerar conjuntamente com o facto
de termos também o segundo pior nível de protecção
social no desemprego (cerca de um quarto da média comunitária).
Perante este cenário, que orientação podem e devem
tomar as políticas de emprego de trabalho?
A primeira possibilidade tem presente um conjunto de tensões e
de problemas sobre os quais quer intervir: a que resulta do dilema entre
a promoção da inclusão pelo emprego e a limitação
das condições que favorecem a exploração,
já referida; a que resulta da atipicidade do emprego e da multiplicidade
das formas de relacionamento salarial serem traços distintivos
da época em que vivemos, que não devem ser considerados
ocasionais ou temporários (Boyer); a que deriva da insuficiência
dos critérios clássicos para definir as fronteiras do mundo
do trabalho caracterizado pela dependência económica; a que
está postulada no "trilema das economias de serviços"
(Iversen e Wren), segundo o qual as políticas públicas estão
sujeitas a constrangimentos que tornam impossível obter resultados
óptimos para os três vértices que definem um triângulo
que liga os objectivos da disciplina orçamental, do crescimento
do emprego e da equidade na distribuição dos rendimentos.
As políticas públicas coerentes com tal estratégia
tenderão a centrar-se na gestão daquelas tensões
e a regular as diversidades que coexistem nos mercados de trabalho e de
emprego, o que exige a redução do intervencionismo legislativo
e administrativo, objectivo que é realizável através
conjugação duma lei renovada - bem sistematizada, susceptível
de ser conhecida e aplicada com rigor - com uma negociação
colectiva a que se dê possibilidades de ter um papel mais relevante.
A possibilidade alternativa parte da concepção - a meu ver
sistemicamente errada, quando uma imensa maioria de micro e pequenas empresas
coexiste com um emprego em que predominam muito baixos níveis de
escolaridade e de qualificação - de que é adequada
aos tempos em que vivemos uma reforma da legislação laboral
que assenta num código com muitas centenas de artigos, a ser complementado
por dezenas de leis e em que o papel da negociação colectiva
fica espartilhado entre a imperatividade da lei, a eventualidade da intervenção
administrativa do Governo e a individualização das relações
de trabalho.
Tal estratégia é, a meu ver, demasiado virada para os problemas
do passado para ser adequada a estes anos em que uma nova agenda das políticas
de trabalho, de emprego e de protecção social, para se obter
eficácia e equidade na regulação dos mercados de
trabalho e de emprego, só pode ser abordada com a utilização
dos múltiplos instrumentos de intervenção.
O anterior ciclo político, ao ser interrompido, terminou sem deixar
decididas a sistematização e a renovação estrutural
da legislação do trabalho e o reforço da sustentabilidade
social do sistema de solidariedade e segurança social de que carecem
mercados de trabalho e de emprego em que crescem simultaneamente os riscos
sociais - ligados às descontinuidades e às mudanças
de profissão e de situação profissional - e a intolerância
dos cidadãos perante eles.
Mas trabalhou nelas e deixou um património de acordos de concertação,
de instrumentos técnicos e legislativos que desenham um caminho
de resposta aos problemas que temos, evitando o equívoco de responder
a problemas que não temos. Os resultados desse trabalho ficaram,
aliás, à disposição da comunidade.
No actual ciclo político, parece ter sido escolhida uma via que
alterou as prioridades que no anterior foi fixada com os parceiros sociais,
a qual, julgo, não resolve os problemas que temos nem é,
substantiva e sistemicamente, adequada aos desafios do presente e do futuro.
Há trabalhos de Sísifo e é indiscutivelmente legítimo
que cada governo tenha opções diferentes. Mas é minha
convicção que o caminho em direcção à
renovação e à sustentabilidade de que falei, que
apenas se iniciou, está ser invertido, deixando-nos mais longe
desta do que estávamos quando o actual ciclo político se
iniciou.
*Ex-Secretário de Estado do Trabalho e Formação