Ruben Eiras
OS MAGISTRADOS portugueses precisam de interiorizar a responsabilidade
social da sua profissão e apostar na formação permanente.
Esta é a posição defendida por Mário Mendes,
director do Centro de Estudos Judiciários.
EXPRESSO - Qual o estado da formação de magistrados
em Portugal?
MÁRIO MENDES - Em termos de formação técnica,
é boa. Seguimos em Portugal o modelo francês, que também
é seguido pelos espanhóis. Estamos a falhar é no
recrutamento. Há que rever muitos critérios.
EXP. - Quais os critérios a serem revistos?
M.M. - O leque de provas dos candidatos deverá ser mais
abrangente. Não se deve focalizar tanto na parte técnico-jurídica.
O actual leque de provas fora deste âmbito consiste apenas numa
composição, que é um exame de cultura geral, e
num exame psicológico, que consiste numa entrevista oral de 30
minutos. Não é um exame psicotécnico. É
um diagnóstico que só permite apurar as psicopatias evidentes,
ou seja, as situações de algum distúrbio do ponto
de vista psicológico. Mas não permite avaliar a adequação
da personalidade daquele candidato para o exercício de funções
com as responsabilidades de ser magistrado.
EXP. - E que tipo de novos testes seriam necessários?
M.M. - Testes de resistência ao stresse, à pressão,
de capacidade de decisão, de capacidade de auto-responsabilização
e da sensatez do candidato.
EXP. - E porque é que não são introduzidos?
Por resistências do sistema judicial?
M.M. - Em 1998, quando foi aprovada a actual lei de recrutamento
e formação dos magistrados, a primeira versão previa
a aplicação de exames para a avaliação do
perfil psicológico do magistrado. Houve pressão de alguns
sectores da Assembleia da República contra esta medida, com o
argumento de se estar a criar um "padrão" de magistrado.
Creio que não é dentro da magistratura que se encontram
as maiores resistências. O receio encontra-se mais no campo político,
por causa das questões relacionadas com a padronização
do perfil de magistrado.
EXP. - Mas isso não será benéfico? Se em grandes
empresas se fazem testes psicotécnicos aos candidatos a gestores
de topo, os quais, em muitos casos, têm que agir como juízes
em determinadas situações, porque não se aplica
o mesmo método aos magistrados?
M.M. - Pois é. Às vezes, um gestor de topo tem responsabilidades
tão grandes quanto as de um juiz. Por exemplo, não se
compreende por que é que existe este tipo de testes na Polícia
Judiciária, e não se aplica a magistrados e a oficiais
de justiça. Não há razão para isto continuar
assim. Os exames psicotécnicos deviam ser obrigatórios.
EXP. - Outra crítica veiculada no meio judicial é a
baixa faixa etária dos candidatos a magistrados. A juventude
é sinónimo de falta de experiência e bom senso?
M.M. - Será um sinal de alguma falta de experiência
de vida, mas não de bom senso. Quem é insensato em jovem,
é insensato em velho. O problema estará na experiência
de vida, do conhecimento da realidade social e económica, que
hoje em dia é indissociável da profissão de juiz.
EXP. - E porque não se orienta o recrutamento para pessoas
que possuam mais experiência profissional?
M.M. - Tenho algumas dúvidas sobre esse campo de recrutamento.
Uma pessoa que saia aos 24 anos da faculdade e conquista uma situação
profissional estável e rentável, já não
quer mudar. Então o campo de recrutamento restringe-se às
pessoas que falharam nesse período. Há uma fatia pequena
de candidatos que estão bem preparados e que escolheram esta
profissão como vocação. Mas actualmente, a maior
parte dos candidatos fazem parte de 2000 a 3000 licenciados de direito
que andam à procura do primeiro emprego, e que falharam numa
série de experiências profissionais.
EXP. - Portanto, a base de recrutamento é de má qualidade.
M.M. - É. Nós não podemos olhar este problema
de dentro para dentro. O problema é o destinatário. A
justiça faz-se para os cidadãos. Não podemos submeter
a vida dos cidadãos a pessoas que não têm o mínimo
de competência profissional. Isto é extremamente grave.
EXP. - Então qual é a solução?
M.M. - Primeiro, temos de rejeitar a ideia de que a raiz dos
males é a juventude. Por exemplo, os auditores da escola nacional
francesa de magistratura têm uma média etária bastante
mais baixa do que a nossa, entre os 22 e 23 anos. Nós situamo-nos
na média dos 27, 28 anos. Outra medida é criar no fim
da formação de magistrado um período experimental,
de observação, já sob o controlo dos órgãos
de gestão da magistratura. Os candidatos não terão
que integrar imediatamente os quadros definitivos das magistraturas,
como agora acontece. Isto servirá para ver se a pessoa tem vocação
ou não. É que, no actual período de estágio,
o candidato já ganha um vínculo à magistratura.
Já só pode ser afastado por via de uma inspecção
ou de um processo disciplinar.
EXP. - Então a avaliação é um processo
meramente formal...
M.M. - Pois é (ironiza). É preciso uma pessoa queimar
um processo dentro de um tribunal, porque em outras circunstâncias
a avaliação não tem nenhum impacto. Isto não
pode ser assim!
EXP. - Concorda com o alargamento da formação a ciências
auxiliares do direito, como a sociologia e a psicologia? Essa lacuna
de formação dos juízes não pode ser colmatada
com formação contínua? O que está ser feito
neste âmbito?
M.M. - Pouco. Hoje cada vez menos podemos ter a pretensão
de saber tudo e poder compreender as novas realidades sócio-jurídicas
com a mera leitura de alguns artigos. Há necessidade de uma constante
actualização por parte dos magistrados. Mas fazem-na pouco.
Isto porque a formação permanente não é
obrigatória.
EXP. - E devia ser?
M.M. - Sim. A formação permanente não tem
neste momento qualquer relevância para a progressão da
carreira. Para mudar, o Conselho Superior de Magistratura tem que criar
normas de natureza estatutária que definam quais são as
implicações na carreira de se ter formação
permanente ou não. Não se compreende que um magistrado
possa concorrer ao tribunal de trabalho ou ao de família e de
menores, sem ter tido uma acção de formação
na área. É a mesma coisa que um médico: não
vai para cardiologista quem não tenha especialização
na área. A formação permanente tem que ser credenciada
para efeitos de carreira e certificada.
EXP. - Podemos ter confiança nos magistrados que temos?
M.M. - Sim, em termos de qualidade humana e técnica são
bons. Mas está nas mãos deles fazerem-se e terem bom senso.
EXP. - Quer dizer que a responsabilidade social inerente à
profissão de magistrado ainda não está interiorizada
por quem a exerce?
M.M. - Não, não está. Repare que as pessoas
encaram a entrada no CEJ como uma concretização de um
desejo profissional. Ao assumirem plenamente as suas funções,
têm que fazer um apelo muito grande a si próprias para
as exercerem capazmente.