Cátia Mateus e Ruben Eiras
OS EMPREGADORES portugueses continuam
a negligenciar o investimento na higiene e segurança da sua força
de trabalho. Isto porque, em parte, durante os seus 10 anos de existência,
o Instituto o Desenvolvimento e Inspecção das Condições
de Trabalho (IDICT) não apostou numa aproximação
efectiva junto dos empresários. Quem o reconhece é João
Veiga e Moura, o recém-empossado presidente daquela instituição,
que em entrevista ao EXPRESSO também revelou que cerca de 40% das
empresas de consultoria em higiene e segurança no trabalho estão
ilegais.
Uma nova cultura laboral
Advogado de profissão, poesia por paixão
EXPRESSO - Portugal é um país
onde se trabalha em segurança?
JOÃO VEIGA E MOURA - Em comparação com o resto
da Europa, as estatísticas mostram que há um grande trabalho
a desenvolver nesta matéria em Portugal. O próprio Governo
considera como eixo prioritário a questão da higiene, segurança
e saúde no trabalho (HSST) - quer na área da prevenção,
quer na inspectiva.
EXP. - Quais são neste momento os sectores de actividade com
maior índice de sinistralidade laboral?
J.V.M. - São os da construção, agricultura
e metalurgia. Há que averiguar o trabalho desenvolvido ao nível
das doenças profissionais. Há muito a fazer neste campo.
É que a introdução das novas tecnologias de informação
alteraram o panorama das doenças laborais. É preciso apostar
na investigação nesta área e nos danos causados pelo
trabalho em que a pessoa fica exposta a radiações.
EXP. - E quais são as doenças profissionais que mais
afectam os trabalhadores portugueses?
J.V.M. - Além das novas doenças
que mencionei, existem os tradicionais problemas pulmonares (característicos
dos trabalhadores das minas). Mas infelizmente as nossas estatísticas
não revelam esta realidade de uma forma clara. Isto revela a pouca
preparação dos organismos que estão afectos a esta
área em matéria de investigação e prevenção
das doenças mais problemáticas, que podem provocar a médio
prazo graves problemas ao trabalhador.
EXP. - E que acções concretas tem o IDICT planeadas para
combater este problema?
J.V.M. - Estamos a terminar as campanhas no sector têxtil
e da cerâmica. Foram morosas e exigiram da prevenção
um grande esforço. Investiu-se bastante. Mas estas iniciativas
não são estanques - não devem começar num
ano e acabar no seguinte. É necessária a sua continuidade.
Por exemplo, no sector dos têxteis vamos continuar com o trabalho,
envolvendo as associações e os sindicatos. Também
temos de efectuar uma maior articulação com a área
da saúde.
EXP. - Mas, o que vão fazer em concreto? Vão focalizar-se
na parte pedagógica?
J.V.M. - Não. A parte pedagógica terá várias
vertentes: divulgação, informação e formação,
com uma maior aposta neste último factor. Face à nossa lei
o empregador é o principal responsável (até o único
responsável) pela HSST. Mas relativamente à sensibilização
dos empregadores temos feito muito pouco. É necessário fazer
mais, eles são os nossos principais destinatários.
EXP. - Então os empregadores portugueses são negligentes
em matéria de HSST?
J.V.M. - Os resultados mostram isso. Talvez durante os dez anos
em que o IDICT está no activo nunca tenha estado perto dos empregadores
e esse é um caminho que temos de percorrer. O IDICT é como
uma empresa que possui um produto e que tem de fazê-lo chegar perto
dos seus clientes, os empregadores. É necessário irmos para
o terreno, mostrar o que temos a oferecer-lhes para que possam desenvolver-se.
EXP. - Mas nem o próprio Estado tem dado grandes exemplos
neste campo. São conhecidos vários casos de mão-de-obra
ilegal e de incumprimento de normas de segurança em obras públicas...
J.V.M. - O Estado poderia dar o exemplo se todos os trabalhadores
do Estado nesta área fossem funcionários públicos.
O Estado quando contrata exige o cumprimento de determinados planos de
segurança. Mas ao adjudicar a entidades privadas, há toda
uma cadeia de subcontratações que é difícil
controlar. Mas a inspecção deverá intervir para verificar
o cumprimento da lei. É verdade que a prevenção e
o controlo dos planos de segurança têm que ser desenvolvidos.
EXP. - Isso quer dizer que ao nível da prevenção,
a acção do IDICT tem sido ineficaz?
J.V.M. - Obviamente que a inspecção
tem uma actuação sempre posterior, reactiva. Tem obviamente
um efeito pedagógico, mas é reactiva. Punir também
é prevenir.
EXP. - Não respondeu à pergunta. Dado as coimas
não serem muito altas, se calhar fica mais barato pagar a multa
do que investir na prevenção dos riscos...
J.V.M. - Isso é um problema que tem de ser atacado e de
alguma forma o Código do Trabalho já aumenta as penalizações.
Contudo, reafirmo que ao nível da saúde e segurança
laborais é necessário apostar mais na prevenção
do que se tem feito ao longo destes dez anos.
EXP. - Isso significa a adopção de novas metodologias
e de mais inspectores?
J.V.M. - Significa a adopção de novas metodologias...
Mas ao nível de inspectores, temos os que temos.
EXP. - Mas as estatísticas revelam que o nosso rácio
de inspectores é dos mais baixos da Europa...
J.V.M. - Sim. Mas talvez de uma forma errada tem-se entendido que
a questão dos acidentes de trabalho se esgota na acção
inspectiva. Há um orçamento comum para a inspecção
e prevenção. Mas porque a inspecção é
mais mediática e os acidentes de trabalho também, talvez
tenha havido a tendência de afectar mais recursos para a área
da inspecção do que a da prevenção.
EXP. - Então a anterior direcção optou
pelo mediatismo?
J.V.M. - Não é isso. As necessidades e a pressão
de uma maior inspecção levou a uma maior canalização
de meios para esta área. Neste momento, em 1127 trabalhadores,
dentro da prevenção, temos poucos, só 90 ou 100.
A insuficiência é patente. Por isso, a criação
de uma agência específica para a prevenção
da higiene, saúde e segurança no trabalho permitirá
conceber um orçamento exclusivo para essa área e uma maior
especialização.
EXP. - Então o IDICT e a IGT vão ser separados. Qual
o fundamento desta decisão e que implicações terá
esta mudança ao nível do funcionamento destes organismos?
J.V.M. - O actual modelo que temos, que junta a inspecção
e a prevenção, quando foi criado suscitou muita polémica,
porque certos parceiros sociais defendiam uma maior separação.
Ao fim destes 10 anos, chegamos à conclusão de que é
preciso uma evolução da prevenção proporcional
à da inspecção. É para lá que caminhamos.
Foi formado um grupo de reflexão, ao qual já foi prolongado
o prazo, que irá definir o novo modelo de organização.
EXP. - Passemos à legislação. Não acha
que a HSST ficaria a ganhar com a criação de uma lei de
bases, como será feito com a formação profissional?
J.V.M. - O que acho necessário neste momento é existir
uma lei decorrente dos princípios que estão no Código
do Trabalho, compilá-la, sistematizá-la e torná-la
de fácil leitura e utilização para o empresário
comum. Deverá ser concebida como um manual e uma ferramenta para
o empresário. Já estamos a elaborar um manual para as PME
que contenham os princípios básicos da HSST, com as remissões
para a legislação de acordo com o sector onde se move o
trabalhador. O manual não terá mais de 20, 30 páginas.
O amontoado de leis dispersas também contribui para que os empregadores
classifiquem a questão da saúde e segurança no trabalho
como algo que tem de ser resolvido aparte da empresa: contrata-se empresas
externas para resolver uma exigência legal, mas daí resulta
que o empregador nunca interioriza os conceitos de saúde e segurança
laboral.
EXP.- Qual é o ponto da situação no que diz respeito
à regulação das empresas de consultoria em HSST?
J.V.M. - O sistema de regulação da actividade deste
sector não nasceu de uma forma muito correcta. Tínhamos
mais de 700 empresas a operar neste domínio. A legislação
recentemente publicada instituiu a obrigatoriedade de um licenciamento,
uma vistoria e uma auditoria a serem efectuadas pelo IDICT, a fim de assegurar
e controlar a qualidade das metodologias utilizadas. Até ao momento,
entraram 400 pedidos de requerimento. Isto significa que, provavelmente,
existem cerca de 300 empresas que não possuem condições
para serem aprovadas, já que nem sequer se candidataram.
EXP. - Por falar em licenciamento, a Associação de Portuguesa
de Empresas de Trabalho Temporário (APETT) tem manifestado interesse
em que seja o IDICT a licenciar as ETT em vez do IEFP. Qual a sua posição
sobre esta matéria?
J.V.M. - Isso é uma posição que respeitamos.
Mas é uma questão que merece muita reflexão. Vamos
ver até que ponto o IDICT ou o Instituto de Emprego e Formação
Profissional (IEFP) é a melhor instituição nesta
área para o fazer. O IEFP tem feito um bom trabalho, mas estamos
a equacionar se estaremos mais vocacionados ou não para esta matéria.
EXP. - Mas estão ou não?
J.V.M. - Não quero comprar um guerra com o IEFP. Acho que
se caminhará para uma maior articulação entre as
duas instituições.
Uma nova cultura laboral
UM BOM plano de prevenção de acidentes
de trabalho e doenças profissionais deve assentar numa cuidadosa
avaliação dos riscos para salvaguardar a produtividade da
sua força de trabalho.
Para João Veiga e Moura, o gestor deve ponderar
este factor em qualquer decisão sobre alterações
do ritmo laboral. "Por exemplo, se se intensificar as horas de
trabalho os riscos de acidente aumentam, e muitas vezes os empregadores
nem pensam nisso", refere.
A mudança de mentalidade dos empresários e dos trabalhadores
portugueses sobre a importância da HSST não só passa
por uma maior actividade do IDICT na prevenção, mas também
por um alargamento dos agentes e das parcerias na "revolução
cultural" da segurança laboral.
"As autarquias poderão desenvolver aqui um excelente trabalho,
como entidades licenciadoras e fiscalizadoras. Poderão fazer o
acompanhamento e a fiscalização em conjunto com o IDICT,
bem como a prevenção nessas obras. Este será um importante
passo a dar", avança.
A aposta na formação dos trabalhadores e dos empregadores
em HSST é outra das frentes de luta na nova direcção
do IDICT. João Veiga Moura reconhece que a actual legislação
nesta matéria não está a ser cumprida - a empresa
tem que designar um trabalhador para fazer a conciliação
entre a empresa de serviços e a entidade empregadora -, como também
os fundos financeiros atribuídos para este objectivo não
estão a ser aplicados. "Estamos a equacionar novas formas
de fornecer formação neste campo", mas não
especifica ainda como o irá fazer.
Todavia, João Veiga e Moura assegura que o IDICT irá criar
um "selo" de responsabilidade social que certificará
as empresas que invistam na HSST e a criação de um corpo
próprio de investigação e produção
de dados nesta área.
Advogado de profissão, poesia por paixão
COM 44 anos de idade, João Veiga e Moura, natural
de Coimbra, formou-se em direito na Universidade de Lisboa. Exerceu advocacia
e trabalhou em associações empresariais na área do
sector automóvel, na área laboral. Foi chefe de serviços
jurídicos da Associação de Comércio Automóvel
de Portugal e secretário-geral de concessionários da Renault.
O recém-empossado presidente do IDICT considera
que há um grande esforço a fazer a nível da organização
da sociedade para conseguir conciliar o trabalho com a vida familiar e
social.
Afirma que "não se trabalha pouco em Portugal",
mas quea cultura empresarial deve ter uma melhor consciência da
produtividade laboral e investir nas condições que a propiciem.
Gosta de ler, mas lamenta a falta de tempo advinda das suas novas funções.
Mas ainda conseguiu brindar os entrevistadores com a recitação
do poema "Rainha" de Pablo Neruda. Recostou-se na cadeira, enjeitou
a cigarrilha Davidoff, fitou-nos com os seus enormes olhos azuis e discorreu
a musicalidade das palavras do poeta chileno: Eu te nomeio rainha/Há
mulheres mais altas do que tu, mais altas/Há mais puras do que
tu, mais puras/Há mais belas do que tu, mais belas/Mas tu és
a rainha...