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A Responsabilidade Social no país do "jeitinho"



01.01.2000



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A Responsabilidade Social no país do "jeitinho"
(10-11-2006)

Carla Marisa Magalhães *
ebcarla@fgv.br


Até que ponto a RS poderá ter sucesso num país com a nossa cultura? Para compreenderem o porquê da minha pergunta, permitam-me que conte uma "estória": Era uma vez uma empresa, que tinha um dono chamado Sr. Costa (que embora não tivesse formação superior gostava de ser chamado de Dr.). O Sr. Costa ouviu falar que agora o que está a dar é as empresas criarem planos de RS, pois até já se diz que isso dá lucro, boa imagem e incentivos fiscais! Assim sendo, o Sr. Costa, como não queria investir num profissional devidamente qualificado para esse efeito, encarregou o responsável pelo departamento de Comunicação - o Luís (que embora tivesse um título académico, era chamado, pelo Sr. Costa, apenas de Luís), de criar um projecto de RS.
Ora, o Luís, que já tinha ouvido falar "daquilo" mas não sabia muito bem o que era, resolveu ir assistir a umas palestras sobre o assunto e comprar um livro sobre RS, na esperança de que esse manual o tornasse um expert no assunto. Embora o Luís não percebesse grande coisa sobre o tema, estava confiante de que iria conseguir fazer um bom trabalho e agradar ao chefe. Afinal de contas bastaria ler o manual e pôr em prática o que lá estava escrito. Ora, como o Luís percebia muito de Comunicação, mas não de Cultura (tema fulcral para a RS), ele achava que bastaria instaurar na empresa algumas dicas que o manual fornecia e todos ficariam felizes. Depois seria só informar todos os funcionários acerca dessas novas práticas (o que o Luís apenas faria se fosse um bom profissional de Comunicação). Contudo, a questão agora era: como instaurar a verdadeira cultura de RS na empresa, especialmente numa empresa onde os funcionários não conhecem nem se interessam pelo tema? Sim, porque se isso não fosse bem feito, a médio (senão curto) prazo, tudo iria voltar ao que era antes do Sr. Costa se ter lembrado que se calhar até dá lucro e é bonito investir em RS. Nesse caso, os funcionários não iriam dar muita importância ao tema (a não ser que as políticas desenvolvidas os beneficiassem directamente a eles) e o Sr. Costa iria acabar por achar que está a gastar dinheiro à toa, pois não iria perceber que o retorno das práticas de RS é amplamente social e o económico, por vezes, só é visível a médio ou longo prazo. Isto porque o Sr. Costa também não teria sido alvo da aculturação que a RS requer, pois nem o próprio Luís tinha passado por esse processo. Assim, como tempo é dinheiro, a RS tinha os dias contados na empresa do Sr. Costa, pois a moda não pode durar muito, senão fica "fora de moda"! E assim "era uma vez uma empresa socialmente responsável"…
Esta "estória" não se dirige a nenhuma empresa em particular, mas o Sr. Costa está presente em muitas das organizações portuguesas, assim como o Luís, que é um profissional "habilidoso" que consegue dar um "jeitinho" e fazer algo que afinal até não sabe fazer assim tão bem, mas que acaba por fazer na mesma! Com efeito, vivemos no país do "jeitinho", essa tão famosa característica que o povo brasileiro herdou do seu colonizador. E falo aqui em povo brasileiro, porque foi lá que surgiu a expressão "jeitinho", aplicada à cultura, pela mão da respeitada antropóloga brasileira Lívia Barbosa. Porém, se no Brasil impera o "jeitinho", aqui em Portugal a situação não é muito diferente, fazendo com que a RS esteja a ser mal-tratada, mal compreendida e mal aproveitada. Portugal é de facto um país onde o "jeitinho" se sobrepõe ao conhecimento autêntico e onde a verdadeira vocação é o improviso. E esse traço cultural certamente é um dos responsáveis pelo facto da única taxa de desemprego que não está a baixar no nosso país ser a que diz respeito a pessoas com habilitações superiores. Isso não significa que temos pessoas qualificadas a mais (muito pelo contrário!), mas sim que em Portugal não há tecido empresarial em quantidade e qualidade suficientes para absorver a mão-de-obra qualificada existente, pois muitos dos nossos empresários preferem dar estágios não remunerados a contratarem um recurso humano qualificado que, dessa forma, faria o seu trabalho com uma motivação muito maior; preferem terceirizar ou contratar pessoas de forma precária, quando na verdade necessitam de um funcionário efectivo; preferem ter mão-de-obra menos qualificada mas mais barata, em vez de contratarem licenciados, mestres e doutores (como acontece nas empresas e nos países mais desenvolvidos); preferem sobrecarregar os recursos humanos já existentes, quando na verdade deveriam contratar mais quadros, porque o ritmo de trabalho assim o justifica. Ouvi uma vez um Director de RH, no Rio de Janeiro, dizer o seguinte: "Se o dia acaba e o trabalho não está feito, é porque o Departamento de RH não está sendo bem dirigido: das duas uma, ou o funcionário não está trabalhando bem ou está fazendo o trabalho de dois (ou mais) - e em ambos os casos, a culpa é do Director de RH que não está vendo isso!"
A tudo isto, acrescem as práticas discriminatórias praticadas pelas empresas, tais como a não contratação (ou despedimento) de grávidas ou mães recentes e a não contratação de pessoas com mais de 35 anos. Será que os nossos empresários não percebem que os paradigmas estão a mudar? Será que não percebem que a discriminação feita às mulheres, no que diz respeito à gravidez, ainda afecta mais a taxa de natalidade do nosso país, o que, a médio e longo prazo poderá ser prejudicial para as próprias empresas? E não compreendem que é paradoxal discriminarem pessoas com mais de 35 anos de idade, quando a idade de reforma está a aumentar cada vez mais e muitas vezes a motivação e o conhecimento caminham de mãos dadas com a longevidade e a maturidade?
Enfim, o artigo de hoje tem a pretensão de ser mais reflexivo do que propriamente informativo. Se não reflectirmos todos juntos sobre estas questões, a RS nunca poderá ser verdadeiramente acolhida em Portugal.
Perdoem-me se hoje fui demasiado brusca ou negativista (e perdoem-me as empresas que fazem RS por vocação e não por mero interesse!), mas no país onde surgiu a expressão "jeitinho" e onde tive o prazer de viver quase cinco anos, aprendi que por vezes as palavras não têm nenhum impacto se não forem "nuas e cruas" e impacto é o que mais necessitamos se o que está em causa é a mudança da cultura, da mentalidade e dos paradigmas - sem essas mudanças, a RS estará em Portugal só de passagem!

* Carla Marisa Magalhães (ebcarla@fgv.br) é pesquisadora e consultora na área da RS e doutoranda em Ciências Empresariais, na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho, em parceria com a Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro.






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