A lei que enquadra o equilíbrio de géneros em cargos de administração e fiscalização nas empresas do sector público empresarial e nas cotadas em Bolsa — Lei nº 62/2017 — está em vigor desde 1 de janeiro. Mas, a avaliar pelos números, o seu impacto permanece residual. Segundo dados compilados pela Informa D&B, a pedido do Expresso, nas 49 empresas cotadas, entre 399 gestores que compõem os Conselhos de Administração (CA) contam-se apenas 57 mulheres, 14,2 % do total dos cargos. A percentagem permanece longe do limiar mínimo de 20% definido pela lei para janeiro de 2018 e ainda mais longe da meta de 33,3% fixada para 2020. Há 21 empresas na Bolsa portuguesa que não somam uma única mulher nos seus órgãos de poder. E há 14 onde o número de mulheres é inferior ao mínimo legal.
Os dados do último “Barómetro da Participação Feminina na Gestão em Portugal”, divulgados em março deste ano, já davam conta da disparidade ao referirem que a grande maioria (73%) das funções de administração e direção executiva eram ocupadas por homens e que era nas empresas cotadas que a presença feminina nos CA registava o valor mais baixo — 12,2% —, muito embora a percentagem tenha duplicado em seis anos.
A lei aprovada em junho do ano passado, e em vigor desde 1 de janeiro deste ano, ainda não se traduziu num impacto significativo e está longe de cumprir os seus objetivos. À luz dos dados da Informa D&B, em Portugal, as mulheres continuam fora dos órgãos de poder nas empresas cotadas. Mas a análise não pode ser feita de forma linear. Se por um lado permite fazer uma primeira avaliação sobre o esforço das empresas na promoção da paridade de géneros, a verdade é que há um período de transição previsto na lei.
Mandatos em curso ?têm ‘tolerância’
O documento estipula que “os limiares definidos não se aplicam aos mandatos em curso”. Ou seja, as empresas só estão obrigadas a cumprir as quotas a partir da primeira assembleia-geral eletiva realizada após a entrada em vigor da lei. Neste leque está, por exemplo, a Galp Energia, que, em 19 elementos no seu CA, soma apenas três mulheres (15,7%). O número não é suficiente para atingir a quota dos 20%, mas fonte oficial da empresa garantiu ao Expresso que “a Galp cumpre a lei da representação equilibrada entre mulheres e homens nos órgãos de administração e é a empresa do PSI-20 que antes da aprovação da lei 62/2017 tinha maior representatividade do sexo feminino nos seus órgãos sociais”. A mesma fonte salientou que o mandato da atual gestão só termina no final de 2018, estando previstas novas eleições para 2019. É de esperar que, nessa altura, a empresa acautele as metas da paridade e que tenha até em mente a alteração que já se perfila. É que o Governo manifestou a intenção de aumentar as quotas de género, nas empresas e cargos públicos, dos 20% para os 40%.
A Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género é a entidade competente para acompanhar a nova lei. Mas, no que respeita às empresas cotadas, cabe à Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) monitorizar os incumprimentos, que caso venham a ocorrer podem implicar sanções pecuniárias, em montantes máximos equivalentes a um mês de remunerações do respetivo órgão de administração por cada semestre de incumprimento. À CMVM cabe notificar as empresas do incumprimento e do carácter provisório do ato de designação, dando-lhes um prazo de 90 dias para proceder à regularização. O Expresso procurou saber junto da CMVM se a comissão estaria já a fiscalizar o cumprimento da lei e enviou à comissão um conjunto de questões para as quais não obteve resposta até ao fecho desta edição.
A paridade entre homens e mulheres em funções de administração não está imune a contextos sectoriais. Os dados da Informa D&B demonstram que há uma maior presença feminina nos cargos de gestão em sectores como os Serviços, Retalho, Alojamento, Restauração e Atividades Imobiliárias. Muito embora os especialistas em recrutamento executivo identifiquem novas tendências nesta matéria. Carlos Sezões, sócio da consultora Stanton Chase, destaca “uma clara tendência a presença de mulheres em cargos de topo em empresas tecnológicas, um sector mais masculino”.
Mas a dúvida prevalece: por que razão o género continua a ser uma questão no acesso a cargos de liderança? Não há mais mulheres em cargos de administração porque não as há disponíveis, com mérito e competências técnicas, para assumir a função e, por isso, não chegam às listas finais de candidatos das empresas? Joana Gíria, presidente da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego, diz que não é o mérito que limita o acesso das mulheres ao topo nem a escassez de profissionais qualificadas disponíveis no mercado. “É ainda uma questão de cultura e mentalidade”, defende (ver texto ao lado).
Em Portugal, as mulheres estão em maior número nas universidades, nas pós-graduações e começam a destacar-se nos MBA. Isto traduz-se em oportunidades efetivas de liderança? Carlos Sezões garante que começa a traduzir-se mais. “Se conduzisse há cinco anos um processo de recrutamento para um cargo de administração, na minha lista final teria, em cinco candidatos, cinco homens. Hoje terei pelo menos duas mulheres, eventualmente mais em sectores onde a presença feminina seja maior”, explica. O especialista garante que “os estereótipos estão a cair” e que 30% a 50% dos candidatos finais, em processos de seleção, já são mulheres. “Em 50% a 60% dos casos são elas as escolhidas”, garante. “Mulheres que chegam a esta fase são muito competitivas, impactantes e denotam forte capacidade de influência, o que é decisivo nas entrevistas finais.” Mas, reconhece, “ainda há um longo caminho a percorrer para a igualdade de oportunidades”.
Não é a falta de mérito?que limita o acesso ao topo
Em Portugal, 73 por cento dos diretores-executivos são homens. Joana Gíria, líder da Comissão para a Igualdade, diz que não é por falta de mérito que as mulheres não chegam ao topo da hierarquia
Num mundo ideal, a paridade de género não justificaria a criação de uma lei específica para garantir o equilíbrio de homens e mulheres em posições de liderança. Porque na verdade, o mérito não tem género, tem competência. E não é por falta de mérito que as mulheres não chegam ao topo. Pelo menos essa é a convicção de Joana Gíria, presidente da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE).
A gestão de topo nas empresas ainda é um reduto masculino, apesar de várias pesquisas demonstrarem os benefícios da liderança feminina. Um estudo do instituto americano Peterson Institute for International Economics, por exemplo, analisou 22 mil empresas mundiais — em que quase 60 por cento não tinham elementos femininos nos seus conselhos de administração — para concluir que entre as empresas sem mulheres em funções de topo e as que detêm uma quota feminina de 30 por cento, há um ganho de 15 por cento no lucro das empresas lideradas por mulheres.
Naturalmente, não há ainda dados para Portugal sobre o efeito das quotas. Mas na Noruega, país pioneiro na imposição de quotas (em 2005 foi aprovada uma quota mínima de 40 por cento de mulheres em cargos de topo em empresas cotadas), o economista Knut Nygaard concluiu, em 2011, no seu doutoramento, que após a imposição de quotas os lucros das empresas afetadas aumentaram.
Desigualdades permanecem
Um trabalho posterior do mesmo autor comparou a evolução da rentabilidade de empresas cotadas (abrangidas pela lei) e não cotadas e concluiu que as empresas não melhoraram, nem pioraram, o seu desempenho pela aplicação da lei. O que demonstra que as análises estão longe de ser lineares. Na prática, o que aconteceu foi uma substituição dos elementos masculinos menos experientes que integravam os conselhos de administração por mulheres mais habilitadas e isso não teve impacto nos resultados.
Esta é uma questão-chave para a presidente da CITE, Joana Gíria, para quem “independentemente de poderem terem maior qualificação do que os homens, as mulheres em Portugal continuam a estar em desigualdade no acesso a cargos de topo”. A prová-lo está o facto de, ao contrário do efeito de substituição que sucedeu na Noruega, em Portugal algumas das mudanças que a Lei da Paridade já gerou “traduziram-se num aumento no número de elementos nos conselhos de administração das empresas para integrar mulheres e não numa substituição de elementos por outros mais qualificados”, refere.
Segundo dados da Informa D&B, em Portugal, 73 por cento das funções de direção-executiva ainda são desempenhadas por homens. E para Joana Gíria, “não é por falta de mérito que as mulheres não chegam ao topo”. Continua a ser uma questão cultural e “uma limitação imposta pela mentalidade de que as mulheres faltam mais para apoiarem as famílias”, explica acrescentando que “é um pensamento assente em modelos muito arcaicos que vai limitando o percurso das mulheres ao longo de toda a carreira, no acesso a cargos de chefia e posições estratégicas, que tem impacto nos salários (e, consequentemente, nas reformas) e no currículo de experiência que as habilita a aspirar posições de topo”. Para a presidente da CITE, torna-se óbvio que ninguém chega a presidente sem uma experiência sólida de liderança anterior e o maior inimigo da paridade continua a ser a resistência à mudança de mentalidade.