A imagem que acompanha este texto poderá ter os dias contados. Poucas são já as explorações agrícolas onde a mão humana nos processos de colheita não foi substituída pela automação. “As que, tendo escala e dimensão relevante, persistem nesta técnica só o fazem porque a evolução tecnológica ainda não se apresenta como uma alternativa viável”, explica Luís Mira, secretário-geral da Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP). E serão poucos, garante. A revolução tecnológica em marcha na agricultura nacional está a mudar por completo o emprego no sector. Nos últimos sete anos, mostram os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), a tecnologia e a consequente redefinição do mercado terá eliminado pelo menos 182 mil empregos no sector primário em Portugal. Mas no mesmo período de tempo, o número de profissionais com formação superior a trabalhar na agricultura aumentou 17% no país.
Em 2017, contrariando a redução de 1,5% verificada no ano anterior, o Valor Acrescentado Bruto (VAB) — valor bruto da produção uma vez deduzido o custo das matérias-primas e outros consumos do processo produtivo — da agricultura nacional aumentou 6,5%, em termos nominais. O retrato, traçado pelo INE, nas Estatísticas Agrícolas, reflete um acréscimo da produção em sectores como a fruticultura e o azeite que atingiram máximos de produção no ano passado, mas não encontra correspondência na criação de emprego no sector. Antes pelo contrário. Os dados do Inquérito ao Emprego, disponibilizados também pelo INE, apontam para uma redução de 38% no número de trabalhadores do sector da Agricultura, Produção animal, Caça, Floresta e Pescas, entre 2011 e o terceiro trimestre de 2018. O organismo de estatística não desagrega, com grau de fiabilidade suficiente, o número de trabalhadores de cada um destes sectores, mas Luís Mira confirma que a maioria dos empregos contabilizados e perdidos será em atividades agrícolas.
Nas contas do INE, a agricultura nacional emprega hoje 301,6 mil pessoas. Em 2011, eram 483,9 mil. Um saldo negativo de 182,3 mil trabalhadores que o secretário-geral da CAP justifica com a crise económica que o país atravessou, mas também com a revolução tecnológica que está em marcha no sector. “A agricultura é um dos sectores que mais têm vindo a transfigurar-se pela crescente introdução de novas tecnologias nos processos produtivos”, explica.
Dificuldades de contratação estimulam automação
Pode parecer um contrassenso, mas na opinião do líder da CAP foram justamente as dificuldades de contratação a alavancar, por exemplo, a automação nas colheitas. “Procuram-se trabalhadores rurais e não há”, explica Luís Mira acrescentando que na maioria das produções (vinha, tomate, batata, olival, cereais) os processos de colheita já estão todos mecanizados. “Neste momento, só há dependência humana no sector frutícola que ainda não encontrou na tecnologia uma forma eficaz de substituição”, explica. Francisco Avillez, o investigador que foi coordenador do grupo de peritos para a reforma da PAC e que é hoje coordenador científico da consultora Agro.ges, especializada no apoio ao desenvolvimento rural, confirma-o: “Há uma resistência muito grande dos portugueses a trabalhar na agricultura. É um trabalho difícil e que não é bem remunerado”. Além dos baixos salários, a sazonalidade e a precariedade dos vínculos contratuais com que a agricultura está conotada não favorecerem a captação de mão de obra nacional. Recorde-se que no final do ano passado, um estudo do Centro de Direito e Política Alimentar de Milão, denunciava o problema do trabalho ilegal na agricultura europeia e colocava Portugal no topo da tabela, com uma percentagem de 60% dos trabalhadores ilegais.
O impacto da automação e da inteligência artificial no sector não se mede apenas pela substituição da mão de obra humana por tecnologia nos processos de colheita. “Sistemas de GPS, drones, smartphones, sensores, gestão de dados e até mesmo robôs são hoje uma realidade cada vez maior de explorações nacionais, a par com a inovação genética em plantas e animais”, explica Luís Mira. Falar de agricultura hoje, reforça “não é o mesmo que há 30 anos”. Pedro Matias, presidente do Grupo ISQ que presta serviços de consultoria técnica e certificação e tem apoiado a transformação digital de empresas do sector corrobora acrescentando que os empresários agrícolas já perceberam que “não se pode parar o futuro, por isso, mais vale fazer parte dele”.
Hoje, a tendência é para a prática de uma agricultura de precisão com vantagens muito significativas e acréscimos muito relevantes em termos de competitividade e sustentabilidade, mas com enormes exigências de qualificação para os profissionais. Um desafio que Francisco Avillez reconhece que será crítico no futuro, à medida que aumenta a maior dependência tecnológica das explorações.
Digitalização exige novos perfis de competências
A revolução tecnológica na agricultura extinguiu milhares de postos de trabalho, mas também criou novas oportunidades em áreas com elevado grau de qualificação, realça o especialista. Os dados do INE confirmam-no. Os profissionais do sector estão mais jovens e mais qualificados. Uma análise à evolução da população empregada na agricultura, entre 2011 e o terceiro trimestre de 2018, mostra que a maior redução de trabalhadores aconteceu nas camadas profissionais acima dos 45 anos de idade (-47%) e que os 182 mil empregos eliminados nestes anos concentravam maioritariamente trabalhadores com qualificações abaixo do 3º ciclo do ensino básico. Na verdade, o sector agrícola até aumentou o número de profissionais com ensino secundário e pós-secundário (em 46%) e superior (17%). Francisco Avillez justifca os números com a saída dos mais seniores e menos qualificados para reforma e com a exigência de qualificação imposta pela automação.
“Está sobretudo em marcha uma alteração do tipo de qualificações e de atividades desenvolvidas”, defende também Pedro Matias, reforçando que “haverá sempre atividades em que o ser humano é indispensável. O desafio é colocar as pessoas do lado certo”. E o lado certo nesta revolução é o lado dos que sabem operar e tirar partido da tecnologia, num sector que já não vive sem ela. E isto “coloca desafios acrescidos na atração e capacitação de talentos”, reconhece o presidente do ISQ, que lançou há menos de um mês um hub digital focado em apoiar as empresas agrícolas na transformação digital e na qualificação dos seus profissionais (ver texto ao lado). Pedro Matias recorda que não está em causa o fim da profissões de agricultor — “são vários os estudos que apontam a agricultura como uma profissão de futuro” — o conceito de “ser agricultor” é que será diferente.
O desempenho desta função exigirá mais competências tecnológicas e o mercado já o demonstra. “Parte do emprego que está a ser criado é já para funções altamente qualificadas e ligadas, por exemplo à programação, robótica, automação, tecnologia, análise de dados, investigação e desenvolvimento e até genética das plantas”, explica Luís Mira que acredita que um dos grandes desafios do sector, na perspetiva da captação de talento, passa por mostrar aos profissionais que a agricultura é um área de futuro, com empregos estáveis e carreiras aliciantes. Mas para isso, argumenta Francisco Avillez, é necessário um upgrade nas condições de trabalho no sector, nomeadamente nos salários. “A crescente especialização dos profissionais tem de ser acompanhada por uma valorização salarial, caso contrário teremos no futuro o mesmo problema para recrutar qualificados do que temos hoje para encontrar indiferenciados”.