Notícias

«Formação dos juízes tem que ser humanizada»

30.07.2004


  PARTILHAR





Ruben Eiras

OS JUÍZES são formados parara serem máquinas aplicadoras de leis, estando completamente desligados da realidade social e económica do país. É o que defende João Bilhim, professor no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, da Universidade Técnica de Lisboa e antigo responsável do gabinete de modernização e auditoria da justiça (GMAJ), do ministério da Justiça.


EXPRESSO - Como avalia a formação de magistrados em Portugal?

JOÃO BILHIM - É pouco prática e está desligada da realidade social e económica. Quando era director do GMAJ, chamei a atenção do então ministro da Justiça, António Costa, para este facto. A formação dada no Centro de Estudos Judiciários (CEJ) está altamente separada da prática e as ciências sociais estão praticamente ausentes. E o ensino destas não é suprível com conferências e seminários pontuais - pelo menos 30% do conteúdo programático da formação de magistrados tem que ser em ciências sociais. Não para dar sociologia ou psicologia puras, mas aplicadas ao direito. Isto porque as ciências sociais ajudam a enraizar o magistrado na realidade nacional.

EXP. - Mas os magistrados estão assim tão divorciados da realidade social do nosso território?


J.B. - Tive oportunidade de visitar o país todo nas minhas anteriores funções no GMAJ e encontrei muitos exemplos como este que vou relatar. Imagine uma comarca, na Ponta do Sol, na Ilha da Madeira, com um magistrado que nasceu e viveu na Avenida de Roma, em Lisboa. Vai ter que decidir sobre casos de direitos reais, de partilhas de terras. Esta pessoa só conhece a cultura citadina, o que aprendeu na faculdade, ou seja, conhecimentos em direito, e o que lhe foi ensinado no CEJ - direito outra vez. E quando vai julgar uma litigância sobre partilhas não faz ideia do símbolo e do valor de uma terra herdada para as pessoas que vivem no mundo rural.

EXP. - Ou seja, possuem uma visão demasiado legalista e técnica do direito...


J.B. - E sobretudo mecanicista. A formação do CEJ tem sobretudo formado máquinas que aplicam leis. Para isto, usamos computadores, que são melhores do que humanos em processos mecanicistas. O magistrado que julga em nome do povo tem que ser algo para além do aplicador da lei. Formam-me "juízes-máquinas" e não "juízes-homens". Esta mentalidade de ensino é um dos principais factores da baixa qualidade do nosso sistema judicial.

EXP. - Como assim? Pode ser mais específico?


J.B. - Por exemplo, é incompreensível que um juiz passe da área do crime, para a do trabalho e depois para a da família sem ter formação específica em nenhuma delas. Mais uma vez, isto acontece porque o juiz é visto como uma máquina de aplicação de leis. Como domina o direito adjectivo - ou seja, o processo -, não importa qual é a matéria a julgar, porque pensa-se que o juiz funciona como uma máquina, um computador. Isto hoje é inaceitável num sistema de gestão de quadros qualificados e é o erro que se aplicava tradicionalmente à função de gestor. Pensava-se que "um gestor é sempre gestor, não importa em que seja". Pode gerir a Coca-Cola, um departamento de I&D ou de logística. Onde quer que esteja, aplica sempre as suas técnicas de gestão. Isto não é assim - o gestor tem de conhecer o sector onde está. Quando muda de área, ele tem de a conhecer em profundidade para melhor responder às suas necessidades.

EXP. - Então qual é a solução?


J.B. - Não é preciso inventar a roda - é ter formação contínua e específica. A lei não deverá permitir que alguém mude de jurisdição e de área sem ter formação específica na temática para onde vai transitar. E nenhum magistrado deve progredir na carreira sem ter formação contínua. E não é só o CEJ que deve fornecê-la, mas também as próprias universidades, como acontece nos EUA. Isto descentralizaria a formação e responderia às necessidades sociais e económicas específicas das regiões.

EXP. - Defende que o Conselho Superior de Magistratura (CSM) deverá transformar-se principalmente num órgão gestão de quadros. Porquê?

J.B. - Actualmente, o CSM reduz-se à função de órgão disciplinar. Em sistemas mecanicistas, primeiro bate-se, gere-se com a cenoura e o pau. A sociedade industrial era gerida assim. Mas evoluímos, estamos na sociedade do conhecimento. O CSM deve centrar a sua função na gestão de quadros qualificados. Como qualquer órgão de gestão de quadros, deve centrar-se na gestão das carreiras, da formação, das remunerações, da motivação do pessoal, da avaliação... É introduzir uma gestão estratégica de recursos humanos! É aqui que se deve atacar o problema!

EXP. - E o que é preciso fazer para introduzir essa mudança?


J.B. - É preciso vontade política e das magistraturas.

EXP. - E a nível do CEJ, que tipo de reestruturação defende?


J.B. - O poder político é que tem de decidir sobre esta matéria. Há a evolução na continuidade e há crises que só se resolvem com processos de ruptura. A situação da formação dos magistrados só se resolve por esta segunda via. Os directores-adjuntos do CEJ devem ser magistrados, mas já o director não, para não ser influenciado pelas magistraturas. Teria de ser alguém sem formação em direito, mas com sensibilidade para a matéria e a realidade do sector, com poder político, para ter liberdade e autoridade para resolver as questões. Mas isto também não se resolve se o CSM não se tornar num órgão de gestão de quadros altamente qualificados. É que a formação é apenas uma parte do problema.






DEIXE O SEU COMENTÁRIO





ÚLTIMOS EMPREGOS