Ruben Eiras
OS JUÍZES são formados parara serem máquinas
aplicadoras de leis, estando completamente desligados da realidade social
e económica do país. É o que defende João
Bilhim, professor no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas,
da Universidade Técnica de Lisboa e antigo responsável do
gabinete de modernização e auditoria da justiça (GMAJ),
do ministério da Justiça.
EXPRESSO - Como avalia a formação de magistrados em
Portugal?
JOÃO BILHIM - É pouco prática e está
desligada da realidade social e económica. Quando era director
do GMAJ, chamei a atenção do então ministro da
Justiça, António Costa, para este facto. A formação
dada no Centro de Estudos Judiciários (CEJ) está altamente
separada da prática e as ciências sociais estão
praticamente ausentes. E o ensino destas não é suprível
com conferências e seminários pontuais - pelo menos 30%
do conteúdo programático da formação de
magistrados tem que ser em ciências sociais. Não para dar
sociologia ou psicologia puras, mas aplicadas ao direito. Isto porque
as ciências sociais ajudam a enraizar o magistrado na realidade
nacional.
EXP. - Mas os magistrados estão assim tão divorciados
da realidade social do nosso território?
J.B. - Tive oportunidade de visitar o país todo nas minhas
anteriores funções no GMAJ e encontrei muitos exemplos
como este que vou relatar. Imagine uma comarca, na Ponta do Sol, na
Ilha da Madeira, com um magistrado que nasceu e viveu na Avenida de
Roma, em Lisboa. Vai ter que decidir sobre casos de direitos reais,
de partilhas de terras. Esta pessoa só conhece a cultura citadina,
o que aprendeu na faculdade, ou seja, conhecimentos em direito, e o
que lhe foi ensinado no CEJ - direito outra vez. E quando vai julgar
uma litigância sobre partilhas não faz ideia do símbolo
e do valor de uma terra herdada para as pessoas que vivem no mundo rural.
EXP. - Ou seja, possuem uma visão demasiado legalista e técnica
do direito...
J.B. - E sobretudo mecanicista. A formação do CEJ
tem sobretudo formado máquinas que aplicam leis. Para isto, usamos
computadores, que são melhores do que humanos em processos mecanicistas.
O magistrado que julga em nome do povo tem que ser algo para além
do aplicador da lei. Formam-me "juízes-máquinas"
e não "juízes-homens". Esta mentalidade de ensino
é um dos principais factores da baixa qualidade do nosso sistema
judicial.
EXP. - Como assim? Pode ser mais específico?
J.B. - Por exemplo, é incompreensível que um juiz
passe da área do crime, para a do trabalho e depois para a da
família sem ter formação específica em nenhuma
delas. Mais uma vez, isto acontece porque o juiz é visto como
uma máquina de aplicação de leis. Como domina o
direito adjectivo - ou seja, o processo -, não importa qual é
a matéria a julgar, porque pensa-se que o juiz funciona como
uma máquina, um computador. Isto hoje é inaceitável
num sistema de gestão de quadros qualificados e é o erro
que se aplicava tradicionalmente à função de gestor.
Pensava-se que "um gestor é sempre gestor, não importa
em que seja". Pode gerir a Coca-Cola, um departamento de I&D
ou de logística. Onde quer que esteja, aplica sempre as suas
técnicas de gestão. Isto não é assim - o
gestor tem de conhecer o sector onde está. Quando muda de área,
ele tem de a conhecer em profundidade para melhor responder às
suas necessidades.
EXP. - Então qual é a solução?
J.B. - Não é preciso inventar a roda - é
ter formação contínua e específica. A lei
não deverá permitir que alguém mude de jurisdição
e de área sem ter formação específica na
temática para onde vai transitar. E nenhum magistrado deve progredir
na carreira sem ter formação contínua. E não
é só o CEJ que deve fornecê-la, mas também
as próprias universidades, como acontece nos EUA. Isto descentralizaria
a formação e responderia às necessidades sociais
e económicas específicas das regiões.
EXP. - Defende que o Conselho Superior de Magistratura (CSM) deverá
transformar-se principalmente num órgão gestão
de quadros. Porquê?
J.B. - Actualmente, o CSM reduz-se à função
de órgão disciplinar. Em sistemas mecanicistas, primeiro
bate-se, gere-se com a cenoura e o pau. A sociedade industrial era gerida
assim. Mas evoluímos, estamos na sociedade do conhecimento. O
CSM deve centrar a sua função na gestão de quadros
qualificados. Como qualquer órgão de gestão de
quadros, deve centrar-se na gestão das carreiras, da formação,
das remunerações, da motivação do pessoal,
da avaliação... É introduzir uma gestão
estratégica de recursos humanos! É aqui que se deve atacar
o problema!
EXP. - E o que é preciso fazer para introduzir essa mudança?
J.B. - É preciso vontade política e das magistraturas.
EXP. - E a nível do CEJ, que tipo de reestruturação
defende?
J.B. - O poder político é que tem de decidir sobre
esta matéria. Há a evolução na continuidade
e há crises que só se resolvem com processos de ruptura.
A situação da formação dos magistrados só
se resolve por esta segunda via. Os directores-adjuntos do CEJ devem
ser magistrados, mas já o director não, para não
ser influenciado pelas magistraturas. Teria de ser alguém sem
formação em direito, mas com sensibilidade para a matéria
e a realidade do sector, com poder político, para ter liberdade
e autoridade para resolver as questões. Mas isto também
não se resolve se o CSM não se tornar num órgão
de gestão de quadros altamente qualificados. É que a formação
é apenas uma parte do problema.