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O espírito natalício



01.01.2000



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Carla Marisa Magalhães *
ebcarla@fgv.br


Com o advento da globalização, o acesso ao crédito fácil e o excesso de marketing com que diariamente somos bombardeados, o Natal dos tempos modernos deixa vir ao de cima uma característica do ser humano que choca frontalmente com a discrepância económica existente no mundo e com a actual crise que se vive: a tendência para o consumo desenfreado de bens supérfluos, que muitas vezes são adquiridos com base em sentimentos fúteis e exageradamente consumistas e/ou às custas de endividamentos cíclicos que, é certo, são incentivados por políticas irresponsáveis de acesso ao crédito.

Deste modo, numa era em que se contesta o excessivo ímpeto consumista do cidadão, as desigualdades sociais, o endividamento das famílias, o descaso dos mais abastados para com os mais carenciados e a deturpação daquilo que realmente é o verdadeiro espírito natalício, podemos questionar-nos sobre a nossa forma de agir neste Natal e sobre o modo como podemos ser socialmente responsáveis nesta quadra festiva.

Em primeiro lugar, devemos ter consciência de que o Natal dos tempos modernos (sobretudo no mundo ocidental) foi transformado num palco de consumo irreflectido e até mesmo irracional, em que os valores que andam à volta da verdadeira reunião familiar, da prática de boas acções e do amor pelo próximo (e por nós próprios!), foram substituídos pelos valores que alimentam impulsos consumistas e fogueiras de vaidades, que transformam os espaços comerciais num autêntico circo, onde o consumidor é o “animal amestrado” e o comércio e a banca são os domadores. Contudo, como o que nos separa dos verdadeiros animais circenses é a nossa capacidade racional, não nos podemos desculpar apenas com a grande capacidade de influência que o marketing comercial e bancário exercem sobre nós, sobretudo nesta fase, mas devemos ter também consciência de que se agimos assim é porque nos sentimos bem e felizes ao fazê-lo. Ora, não há nada de errado com o facto do ser humano se sentir feliz, mas será que é correcto sentirmo-nos bem por podermos exercer o nosso poder de compra em prol da satisfação de necessidades supérfluas e muitas vezes egoístas, que chegam a ter por base a ostentação relativa ao nível com que podemos satisfazer essas necessidades? E onde entra o espírito de entreajuda, o amor ao próximo e os valores espirituais (e não tanto materiais) ou seja, o verdadeiro espírito natalício? Onde entra o respeito pelo Meio Ambiente, que nesta fase do ano é tão prejudicado com a produção excessiva de lixo e resíduos, com o consumo excessivo dos recursos (como o abate de árvores – os famosos “pinheirinhos”) e com o desperdício? Onde entram os padrões morais e educativos que devemos incutir nos nossos filhos, que chegam a esta época ávidos pela abertura de prendas que muitas vezes nem valorizam e que os faz acreditar que a beleza do Natal é directamente proporcional ao tamanho do “sapatinho”? Embora todos queiramos ver os nossos filhos felizes, será que uma criança que não é exposta a este ímpeto consumista exagerado não pode ser feliz na quadra natalícia? Será que não é mais correcto transmitir aos nossos filhos, desde pequenos, a ideia de que o Natal, mais do que uma festa material, é uma festa espiritual? Não estaremos assim a zelar pela sua formação moral de forma mais correcta?

Levantadas estas questões, vejamos agora como podemos transformar este Natal num Natal mais consciente, sustentável, responsável e humano:

- Consumir com moderação e consciência! A forma como devemos consumir ao longo de todo o ano, também se deve aplicar nesta época festiva. Claro que nas devidas proporções! Se consumirmos aquilo que realmente é necessário e não nos deixarmos levar por impulsos consumistas exagerados, chegaremos ao fim do ano com a consciência mais leve e com o bolso mais pesado. E o Meio Ambiente também agradece. E, já agora, sempre que tal for possível, porque não consumirmos produtos do Comércio Justo ou das ONGs, cujos fundos revertem a favor de causas sociais? Por fim, recorrer ao crédito para realizar as tão afamadas compras de Natal não é propriamente a melhor opção, pois podemos andar a pagar a factura o ano todo, a qual, após alguma reflexão, acabaremos por perceber que foi exageradamente cara.

- Não incutir nos nossos filhos o espírito de que o objectivo do Natal é dar presentes aos meninos que se portaram bem ao longo do ano ou premiar aqueles que prometem portar-se melhor no ano que vem ou ainda compensá-los pela falta de atenção de que têm sido alvo. Incentivos ao bom comportamento devem ser dados diariamente e não propriamente (ou somente) em troca de bens materiais, mas também em troca de outros bens que, no fundo, são aqueles pelos quais os nossos filhos mais anseiam (muito embora eles próprios nem sempre o percebam ou exteriorizem): amor, atenção, carinho, união familiar e, porque não, solidariedade para com terceiros.

- Aproveitar para ajudar causas que não são nossas (pelo menos directamente). Embora a consciência social deva ser cultivada diariamente, no Natal existem segmentos da população que se sentem mais vulneráveis, precisamente devido à azáfama típica da época, o que torna este período particularmente oportuno para dedicarmos algum do nosso tempo e até recursos (caso possamos) à satisfação das necessidades daqueles que realmente precisam de nós. Provavelmente iremos ficar surpreendidos com aquilo que está ao nosso alcance fazer para levar um pouco de felicidade e de dignidade ao próximo e em troca de muito pouco esforço da nossa parte. Não esqueçamos o exemplo de Muhammad Yunus (Nobel da Paz 2006) e do Banco Grameen, que contraria precisamente o ditado que refere que “Uma andorinha só não faz o Verão”. Se cada andorinha não fizesse a sua parte, como seria o Verão?

Até que ponto podemos dormir tranquilos na noite de Natal (ou em qualquer outra noite), sabendo que a fome, a pobreza, a doença, a solidão e a falta de dignidade existem fora das nossas portas e que nós nada fazemos para mudar esse cenário, seja por puro egoísmo, seja pelo conforto de acreditarmos que sozinhos nada podemos fazer? Se é para sermos egoístas, então sejamos de uma forma mais nobre, isto é, ajudemos o próximo nem que seja pelo simples facto disso nos fazer bem a nós próprios.

E quanto a si, Sr. Empresário, já se apercebeu da real capacidade que possui para fazer algo realmente útil, nobre e que marque a diferença? Já pensou no poder que tem para ser um forte agente de mudança sem que isso coloque em causa a sustentabilidade do seu negócio (pelo contrário!)? Se uma pessoa isoladamente e muitas vezes sem grandes recursos consegue fazer a diferença, imagine-se a si, que tem à sua disposição uma gama muito mais ampla de recursos, que lhe permitem pôr em andamento uma máquina que nunca deve parar: a máquina da solidariedade e da Responsabilidade Social. Solidariedade, porque estamos em época natalícia e nesta fase essa palavra torna-se bastante apelativa; Responsabilidade Social, porque se é verdade que o autêntico espírito natalício existe, este é o momento ideal para pôr as boas práticas em acção (ou as boas acções em prática).

Não nos podemos esquecer, ainda, de que estamos a atravessar uma fase de mudança de paradigma, em que o Estado Previdência cada vez mais se faz substituir pela acção da Sociedade Civil e das empresas e de outras organizações, na medida em que sozinho, o Estado não consegue dar resposta aos problemas sociais. Porque isso é verdade e porque todos nós, de certo modo, somos responsáveis pelo que se passa à nossa volta, todos temos a obrigação de nos assumirmos como agentes socialmente responsáveis, sobretudo nesta fase, em que a ostentação de uns contrasta com as carências e com as necessidades de outros.

A todos um bom Natal e com um espírito de Responsabilidade Social!

*Carla Marisa Magalhães (marisamagalhaes@clix.pt) é investigadora e consultora na área da Responsabilidade Social e doutoranda em Ciências Empresariais, na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho, em parceria com a Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro.





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